Stela Calafiori e Sara Silva
Campineiro que é campineiro – e até quem veio só de passagem, turistando, quem morou por pouco tempo, enfim, quem passou pela cidade e por algum bar local – com certeza já se deliciou com o famoso lanche “boquinha de anjo”, uma técnica do corte do sanduíche que, até que se prove o contrário, foi criado em Campinas há mais de 50 anos e, não só caiu no gosto dos ‘botequeiros’ de plantão, como ficou famoso no país inteiro.
Foto: Cláudio, Moleza, Divino, Natanael, Diogo e Possante / arquivo pessoal
O corte surgiu no final da década de 1960, pelas mãos e criatividade dos lancheiros do Giovannetti, o mais tradicional bar da cidade, bem no Centro, no Largo do Rosário, fundado em 1937. Pedro Possante, hoje com 81 anos, era um dos funcionários. E relembra a história: “Na época, o Moleza (apelido do colega, já falecido) era o lancheiro principal, e eu dividia minha semana em três dias como garçom e três dias como auxiliar do ‘chapeiro’. Quando o expediente se encerrava e as portas se fechavam, costumávamos ficar no estabelecimento para jantar, tomar uma cerveja e jogar conversa fora, inclusive com os próprios donos do bar”, lembra ele.
O gerente atual da unidade do Giovanetti Rosário, Genilson Souza Urcino, conta que sempre ouviu as histórias de criação dos lanches. E um deles, o Psicodélico, o mais famoso do estabelecimento e também hoje conhecido na cidade inteira, era servido para os funcionários no final do trabalho. “Eram ‘juntadas’ as pontas dos frios que sobravam da noite – rosbife, muçarela, entre outros – e colocadas em um recipiente para fazer um lanchão para todos”, conta ele.
E Possante completa a história. “E como o lanche era muito volumoso, cortávamos em pedaços menores para podermos compartilhar com todos”, lembra ele.
Foto: Giovanetti. Crédito: Estudio Cumaru/divulgação
Tanto o gerente do Giovanetti como Pedro Possante lembram que o corte que haveria de se tornar o mais tradicional e a ‘cara’ de um lanchinho de boteco campineiro começou a ser servido para as mulheres. “Eu me lembro que naquele tempo não tinha nem banheiro feminino para elas. As mulheres começaram aos poucos a frequentar os bares. Os homens estacionavam os seus veículos no Largo do Rosário e, enquanto eles ficavam no estabelecimento, as mulheres permaneciam nos carros, ouvindo uma música, enquanto os garçons levavam chopp e lanche, cortado de forma fracionada para tornar mais fácil a degustação”, lembra o ex-lancheiro.
Além de facilitar a degustação, a novidade levou a um aumento do consumo. “Quando eram muitas pessoas em uma só mesa, o lanche chegava e, em pouco tempo já era consumido, de forma que, logo em seguida, outra opção já era pedida aos garçons”, conta Possante.
O gerente do Giovanetti comenta que o corte faz tanto sucesso que muitos clientes nem olham no cardápio e já pedem um “boquinha de anjo”. “Muitos ficam até sem entender quando perguntamos qual eles querem, achando que se trata de um tipo de lanche. Esta é uma história incrível e nós do Giovannetti nos sentimos orgulhosos de termos sido os precursores desta tradição, que foi levada para tantos outros bares da cidade e também do país”, enfatiza.
Tamanha a ligação com o campineiro, que o sanduíche “Boquinha de Anjo” é oficialmente considerado símbolo gastronômico e cultural da cidade de Campinas. A lei 16.630 foi sancionada pelo prefeito Dario Saadi, e publicada no Diário Oficial do Município no dia 25 de setembro de 2024. Outra lei que institui o dia 10 de maio como data oficial do lanche também foi promulgada na cidade e faz referencia a esta identidade cultural.
Lanche que virou petisco e já ganhou o “Comida di Buteco”
A vantagem do corte “boquinha de anjo”, em vários pedacinhos, é que é possível compartilhar e, portanto, dá pra saborear outros recheios sem ter que ficar limitado a uma só opção individual de lanche. Além disso, combina com a mesa de bar em que a galera compartilha tudo, a cerveja e os petiscos.
Tanto que o concurso “Comida di Buteco”, realizado há 13 anos em Campinas, aceitou que os bares da cidade participem com “boquinha de anjo” por entender que é da cultura local, de acordo com a coordenadora do concurso no interior de São Paulo, Marina Chimenti. Em nenhuma outra cidade brasileira há um petisco parecido em formato de lanche participando do concurso.
Foto: Cabral, “boquinha de anjo” do bar Preste Atenção, vencedor do Comida di Buteco 2016/arquivo
Alguns bares campineiros, inclusive, tem o “boquinha de anjo” como o carro-chefe do cardápio. E em 2016, o bar Preste Atenção foi o vencedor do “Comida di Buteco” em Campinas com o “Cabral”, um sanduíche “boquinha de anjo” no pão francês, com bacalhau, salsinha, provolone, tomate, azeitona preta e rúcula.
Ainda segundo a coordenadora do concurso, muitos bares locais querem participar com uma receita do lanchinho. Em 2022, como houve uma grande quantidade de ingressantes com esta opção, em 2023 foi adotada a mesma regra que já existia para o bolinho: apenas 20% dos petiscos participantes podem ser “boquinha de anjo”, que é válido para os primeiros que inscreverem sua receita, até para ter uma variedade de formatos de petiscos para o público saborear.
A própria Mariana, que é de São Paulo, desconhecia o “boquinha de anjo” até vir parar em Campinas trabalhando no concurso. “Eu nunca tinha ouvido falar e hoje, adoro!”, revela.
E quem não?
Foto no alto: BH Campinas – boca de anjo do Preste Atenção para o Comida di Buteco 2019. Crédito: Dreison Medeiros (divulgação Comida di Buteco)
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