Aniversário de Campinas

Personagens relevantes da história de Campinas sepultados no Cemitério da Saudade terão placas de identificação

8 de julho de 2024

Por Wanderley Garcia

A morte pode ser o fim da vida como a conhecemos, mas não o fim da história. Ao contrário, há muito o que se contar a partir das memórias das pessoas que já se foram. Por isso, a história de Campinas passará a ser contada tendo como referência os túmulos de personalidades relevantes no passado da cidade.

Não pense que as personalidades são apenas os barões do café, homens brancos e ricos de séculos passados. Memórias de muitas outras pessoas ajudam a contar a história da cidade e agora serão resgatadas em um projeto piloto de colocação de placas de sinalização de alguns túmulos no Cemitério da Saudade. Na lista de jazigos sinalizados estão ativistas negras e negros, artistas, esportistas, milagreiros, políticos e figuras populares.

Se o visitante do cemitério vai poder encontrar com facilidade o túmulo de Francisco Glicério, importante político republicano do século 19, também poderá chegar ao jazigo da negra Clara, escravizada da família Egídio de Souza Aranha e uma das primeiras mulheres negras enterradas no cemitério antes permitido somente a brancos.

Ao todo serão 25 identificações de personalidades sepultadas no local, e que fazem parte da história de Campinas (veja a lista completa abaixo).

Foto: túmulo de Hercule Florence, inventor da fotografia. Crédito: Thiago Souza – projeto “O que te Assombra?”

Haverá uma placa com informações gerais na entrada do cemitério e as outras sinalizações individuais espalhadas entre os túmulos. Além de um pequeno histórico da pessoa, o visitante poderá conhecer mais acessando conteúdo complementar na internet a partir de um QR Code colocado em cada placa. Ainda não há data certa para a colocação da sinalização, mas a Secretaria de Cultura e Turismo prevê que até o início de agosto de 2024 devem ser instaladas. Os recursos para a confecção das placas vem de emenda impositiva da vereadora Guida Calixto, no valor de R$ 50 mil.

O diretor de Turismo, Eros Vizel, destaca que há muito tempo a prefeitura percebe a necessidade de trabalhar com os cemitérios com outra perspectiva. “A discussão de trabalhar com cemitério sempre foi um desafio para o departamento de turismo. Desde o início dos anos 2000, a gente olha pro cemitério com um potencial tremendo, um potencial absurdo, não só do ponto de vista das personalidades, mas do ponto de vista artístico, dos monumentos, que são maravilhosos”, comenta.

 
Fotos de esculturas no Cemitério da Saudade / Thiago Souza – acervo do projeto “O que te Assombra?”

“Saudade e Suas Vozes”

Em um movimento recente, tem ocorrido nos últimos anos visitações de grupos aos cemitérios com interesses históricos, artísticos e sobrenaturais. É o caso do projeto “O Que Te Assombra?”, que segundo seu coordenador, o compositor, escritor, roteirista e humorista Thiago de Souza, já levou cerca de 5 mil pessoas aos cemitérios de Campinas em três anos, no passeio hoje intitulado “Saudades e Suas Vozes”. “Todas voltaram”, brinca. Também haverá uma nova edição para celebrar o aniversário de Campinas, e será uma visita noturna, entre o sábado, dia 13 de julho, e madrugada do domingo da data comemorativa, dia 14, começando meia-noite. Saiba mais.

Foto: túmulo da milagreira Maria Jandira dos Santos. Crédito: Thiago Souza – projeto “O que te Assombra?”

O aumento do fluxo de visitantes estimulados pelo turismo levou a Setec a fazer uma ampla revitalização do Cemitério da Saudade. Além da substituição do muro por um gradil, todo o piso está sendo restaurado para melhorar as condições de visitação. O gradil permitirá a visualização das obras de arte do cemitério do lado de fora, além de ajudar na prevenção de furtos.

No local também há obras de importantes artistas, como os escultores Marcelino Velez e Lelio Coluccini. Mas outro atrativo do cemitério, além da arte, são os milagreiros. É o caso do túmulo dos três anjinhos, crianças não identificadas, vítimas de um incêndio. A crença popular atribui a essas crianças várias graças concedidas.

Foto: túmulo de Lelio Coluccini, autor das principais esculturas do cemitério. Crédito: Thiago Souza – projeto “O que te Assombra?”

Segundo Thiago, o Cemitério da Saudade é uma das necrópoles mais ricas em número de túmulos de milagreiros: 16. “Para se ter uma ideia, a gente contabiliza mais ou menos 24 milagreiros em cemitérios da cidade inteira de São Paulo, são mais de 20 cemitérios públicos”, afirma.

O reconhecimento do valor histórico e cultural destes túmulos, se está se intensificando agora, tem raízes já há alguns anos. O jornalista Élcio Henrique Ramos publicou no final dos anos 1990 o livro “Muito Além da Saudade”, onde faz um passeio sobre a história do maior cemitério de Campinas e as histórias que ele conta.

Élcio resgata os primórdios dos sepultamentos de Campinas, no século 18, que, quando não tinha campo santo, os moradores mais abastados, quando morriam, eram enterrados em Jundiaí, levados em longos cortejos até a cidade vizinha.

No livro, Élcio conta a história de milagreiros enterrados na Saudade, alguns que agora receberão as placas de identificação da Prefeitura. Entre eles o Toninho, um escravo – depois alforriado – do Barão Geraldo de Resende. Ele é o personagem da lenda do Boi Falô, e foi enterrado ao lado do túmulo do Barão, uma afronta para a época, numa área onde só se enterravam brancos. “Imagina o Toninho escravo, para ele ser enterrado, ter um mausoléu ali, foi um escândalo na época. Como que um escravo ia ter um túmulo, poder ser enterrado igual o branco?”, destaca o jornalista.

Thiago lembra também que há dois Heróis da Pátria enterrados em Campinas, mas nenhum no cemitério da Saudade. Uma delas é Laudelina de Campos Melo (1904-1991), negra, empregada doméstica, fundadora do sindicato de sua categoria. “É uma mulher precursora não apenas dos direitos das empregadas e empregados [domésticos], mas também da luta racial. Ela é uma pessoa sensacional, está no nosso cemitério e pouquíssima gente sabe disso”. Laudelina está sepultada no Cemitério dos Amarais (Parque Nossa Senhora Conceição).

O outro herói é o compositor Carlos Gomes. Os seus restos mortais estão sob o monumento-túmulo em sua homenagem, na Praça Bento Quirino, no Centro da Cidade. Mas Carlos Gomes passou uma temporada no Cemitério da Saudade. Quando seu corpo chegou de Belém (onde morreu em 1896), foi enterrado provisoriamente no mausoléu da família Ferreira Penteado. Só foi transferido para o jazigo próprio no Centro em 1905.

Personalidades que serão identificadas no Cemitério da Saudade:

01 – Antônio da Costa Santos (1952-2001)
Arquiteto, professor e prefeito de Campinas, foi executado durante seu mandato em crime que segue sem resolução. Teve notável atuação pela urbanização e patrimônio histórico da cidade.

02 – Clara Egídeo de Souza Aranha (X-1923)
Escravizada da família Egídeo de Souza Aranha, foi uma das primeiras mulheres negras a ser sepultada no Cemitério da Saudade.

03 – José Duarte (1935 – 2004)
“Zé do Boné” foi treinador de futebol com atuação nacional. Comandou tanto o Guarani como a Ponte Preta e consagrou-se como figura celebrada por ambas as torcidas.

04 – Três Anjinhos
Memorial a crianças de identidades incertas que foram vítimas de um incêndio, segundo contos populares. São chamadas de anjinhos, pois é dito que graças foram concedidas por estes pequenos milagreiros.

05 – Escravo Toninho (?-1904)
Conhecido como milagreiro e personagem da Lenda do Boi Falô, Toninho foi escravo do Barão Geraldo de Resende e seu cocheiro após a alforria. Pelos bons serviços, foi enterrado ao lado do barão.

06 – João César Bueno Bierrenbach (1872-1907)
Foi tribuno, orador e professor, além de criador e primeiro Secretário do Centro de Ciências Letras e Artes.

07 – Marcelino Velez (1883-1952)
Foi escultor reconhecido, nomeado para a cadeira de desenho e caligrafia da Escola Normal, na qual lecionou por 33 anos. Dentre suas obras se destaca o Monumento ao Soldado Constitucionalista.

08 – Francisco Glicério de Cerqueira Leite (1846-1916)
Político, teve atuação nacional no Partido Republicano Federalista (PRF). Após a proclamação da República foi Ministro da Agricultura, Comércio e Obras Públicas.

09 – Aldo Chioratto (1922-1932)
Foi escoteiro da Comissão Regional de Campinas e agregado à Cruzada escoteira Pró-Constituição. Faleceu em bombardeio liderado pelas Forças Armadas Brasileiras.

10 – Renato Gomide Corte Real ( 1924- 1982)
Ator e comediante, teve trajetória notável nas décadas de 1960 e 1970 na televisão brasileira.

11 – Santuário Senhor Tranca Ruas das Almas
Tranca Ruas é considerado um guardião poderoso, além de “senhor dos caminhos, o orixá mensageiro e vencedor de demandas” para seguidores das religiões de Matriz Africana.

12 – Hélio dos Santos (1930-2015)
Massagista, marcou época nos anos 1970 e 1980 trabalhando na Ponte Preta e São Paulo F.C. Atendia de forma voluntária pessoas que tinham sequelas de AVC, principalmente o povo negro.

13 – Antoine Hercule Romuald Florence (1804-1879)
Hercule Florence veio da França em expedição no interior e fixou residência em Campinas. Foi desenhista, polígrafo e precursor de um dos primeiros métodos de fotografia do mundo, sendo considerado responsável pela invenção isolada da fotografia no Brasil, em Campinas, em 1833.

14 – Lélio Coluccini (1910-1983)
Italiano, viveu em Campinas desde cedo. Foi escultor renomado, inclusive é autor de várias esculturas no cemitério, e legou obras para a cidade, como o Monumento às Andorinhas (Bicentenário). Recebeu o título de cidadão campineiro em 1961.

15 – Bento Quirino dos Santos – (1837-1914)
Político republicano e empresário, foi fundador da Cia Campineira de Água e Esgoto, atual Sanasa, bem como um dos fundadores do Colégio Culto à Ciência.

16 – Benedito José Amauro (1946–2023) e Nicéa Quintino Amauro (1976–2023)
Representantes da causa e das lutas do Movimento Negro de Campinas. Mestre Lumumba foi músico e ativista da cultura popular. Dra. Nicéa foi professora, cofundadora da Casa Laudelina de Campos Melo e Presidenta da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN).

17- Mario Gatti (1879-1964)
Médico de origem italiana, teve atuação memorável na medicina da cidade e, por isso, foi homenageado com a nomeação do Hospital Municipal Mario Gatti e Hospital Infantil Mario Gattinho.

18 – Capela e Mausoléu de Joaquim Ferreira Penteado (1808-1884)
Conhecido como Barão de Itatiba, foi proprietário da Fazenda das Cabras e da Fazenda Duas Pontes, sendo referência no cenário cafeeiro campineiro. Em 1880 criou e manteve a Escola do Povo, atendendo a órfãos e desfavorecidos.

19 – Maria Jandira dos Santos (1911-1934)
Foi personagem memorável na história campineira, marcada por tamanha desilusão amorosa que a levou às chamas. Apesar do passado controverso, é popularmente lembrada como uma milagreira que coleciona flores e graças a ela atribuídas.

20 – Odette Valentim Domingos (1934-2023)
Filha de trabalhadores do campo, foi uma atleta do arremesso de peso e lançamento de dardos e disco. Ganhou mais de 1 mil medalhas, 3 mil troféus e cinco títulos mundiais, tornando-se a maior medalhista da história de Campinas.

21 – João Lopes de Camargo (1931 – 2003)
Mané Fala Ó foi figura popular com seu bordão “menina, fala ó pra mim”, determinado a conquistar a atenção das moças bonitas da cidade. Trouxe risos para as ruas do Centro, inspirando músicas e escolas de samba.

22 – Vítimas do Massacre da Porteira do Capivara (1917)
Mausoléus dedicados a Antônio Rodrigues Magotto, Tito Ferreira de Carvalho e Pedro Alves, falecidos em bloqueio da porteira do Capivara na Greve Geral de 1917. Um dos primeiros monumentos às classes populares no Brasil.

23 – Aureluce dos Santos (1948-2020)
Cantora considerada a primeira-dama do samba campineiro. Iniciou a vida na música no Coral Maria Neves Baltazar. Deixou um legado imortal para o samba e para Campinas.

24 – Rogéria Elias Malaquias (1956-2015)
Integrante do Coral Maria Neves Baltazar, vice-presidente do Grupo Força da Raça e importante ativista da comunidade negra.

25 – Roberto Elias Malaquias (1958-2013)
Escoteiro e radialista, se destacou como um dos pioneiros Djs negros de Campinas, com participações no Grupo Afro Soul, Boate WooDoo e Salão Paineiras da Ponte Preta. Componente do Coral Maria Neves Balthazar, se apresentou junto à Sinfônica de Campinas.

Foto no alto: P.A Oliveira Fotografia (reprodução Instagram @oqueteassombra)

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