(*) Por Rebecca Ferreira Carvalho
Entre os filmes que cercam o Oscar este ano, nos deparamos com as complexidades, tanto no feminino, a mulher e a maternidade em “A Filha Perdida”, assim como referente ao masculino, a virilidade, aos “desejos reprimidos” e “repressões interpessoais”.
“Ataque dos Cães” (com maior número de indicações ao prêmio) é esse filme que, por trás das cortinas ambientadas do faroeste americano de 1925, nos remete às dicotomias existentes nos estereótipos do “ser homem”, da masculinidade e no “bom homem”.
O filme
É baseado no romance, de mesmo nome, escrito em 1967 por Thomas Savage. O livro foi adaptado pela própria diretora do filme, Jane Campion. A diretora e o roteiro adaptado também estão concorrendo ao Oscar.
Logo de início somos apresentados aos irmãos Burbank. Dois fazendeiros responsáveis em administrar seu bem-sucedido negócio familiar. Os irmãos são Phil, interpretado por Benedict Cumberbatch, que concorre ao Oscar como melhor ator, e George, interpretado por Jesse Plemons, que também concorre ao Oscar como ator coadjuvante.
Certo dia os dois conhecem Rose (Kirsten Dunst, que concorre como melhor atriz coadjuvante), viúva, proprietária de um restaurante, e seu filho
adolescente Peter (Kodi Smit-McPhee). Phil ridiculariza uma flor de papel que enfeitava a mesa feita por Peter, remetendo a ideia que seria um ato
“afeminado” confeccionar flores.
Desde este dia os acontecimentos avançam entre os quatro personagens, estabelecendo laços e relações familiares que se entrelaçam em percepções e correlações das funções familiares e de gênero, assim como questionamentos de seus papéis sociais pré-estabelecidos.
A masculinidade e as dicotomias
De agora em diante entraremos em detalhes que serão spoilers.
O filme mostra aos espectadores os padrões sociais e as predefinições do “masculino” e do “ser másculo”, assim como seus contrastes. Entre os irmãos vimos estas diferenças logo no início. Phil é apresentado como um homem controlador, impetuoso, com a masculinidade estereotipada. Enquanto seu irmão George é contido, de poucas palavras, gentil e compreensivo.
O filho de Rose, Peter, entra no meio termo destas vertentes masculinas. Ao mesmo tempo é um rapaz gentil, que ajuda a mãe no restaurante, faz belíssimas rosas de papel e atento aos detalhes, ele também é determinado em seguir o mesmo caminho de médico do seu pai falecido. Nossos três principais personagens masculinos divergem e se ultrapassam em seus figurinos, atuações e percepções, em momentos em que a masculinidade está sempre em teste nos demais personagens.
A diretora foca nas manifestações do masculino e do feminino, por meio dos personagens em suas cenas, reforçando o debate sobre a temática e nos contrastes em diversos momentos.
Um exemplo deste contraste é a cena de Phil sentado fazendo uma trança de corda usando couro. A cena é projetada, esteticamente, para lembrarmos como se fosse uma menina trançando os longos cabelos. Outra cena é quando Rose aparece cambaleando em um beco, bebendo uma garrafa de Bourbon, remetendo as cenas de “bebuns” saindo dos ‘saloon’ nos filmes. O grande foco do filme é levantar nossos questionamentos acerca das identidades pré-concebidas ou já instituídas. O filme, por mais que se passe em 1925, levanta questões extremamente recentes e que ainda não conseguimos nos desconectar como sociedade.
Uma destas questões atuais, que a diretora levanta, é a interação (e a não-interação) entre Phil e Rose. As ações abusivas de Phil com Rose sem trocar nenhuma palavra, reforçam como os relacionamentos abusivos não precisam ser apenas agressões físicas, mas o abuso psicológico é tão terrível quanto.
Da mesma forma podemos nos questionar por que Phil a trata desta forma? Por que ele não deseja a felicidade de seu irmão e nega esta esposa de todas as formas? Este ciúme e obsessão que Phil apresenta é representado como uma forma de (que ele acredita ser) “amor”. Esse mesmo sentimento também é representando quando ele lembra do grande “Bronco Henry”. Em diversas cenas o filme remete, propositalmente, ao culto do corpo masculino, a amizade masculina mais próxima, as trocas de olhares e toques. Os mesmos personagens que tem essa “masculinidade” e “virilidade” estereotipada, também apresentam essas ações e comportamentos, reforçando a ideia dos filmes sobre gêneros, sexualidade e identidades já instituídas.
O ciclo da violência e os cães
Além de nos iluminar com reflexões acerca da identidade e gênero, o filme ainda nos remete aos mais diversos fatores desencadeadores nas relações violentas e tóxicas.
Phil não dá espaço para que seu irmão consiga se expressar ou se colocar em meio a seus funcionários. George nunca se sentiu amado, desejado ou necessário em nenhum de seus vínculos familiares. Seu jeito tímido o deixou mais reprimido e reforçou sua solidão. Observamos claramente a falta
de compreensão e a necessidade emocional mínima na cena em que ele e Rose estão dançando.
Ao mesmo tempo, observamos como Phil sem conseguir entender e desejar o melhor para seu irmão, continua desejando-o apenas para si. O casamento de George com Rose rompe essa necessidade que Phil pensava que George tinha dele. Phil cercado por ódio começa a aterrorizar psicologicamente Rose.
A falta de diálogo no filme entre os personagens é clara. Falar sobre seus problemas é inexistente, sendo compensado em outros fatores ou ações. Rose, por exemplo, começa a beber (ato que no começo não suportava) para tentar lidar com os maus tratos sofridos por Phil. Seu filho Peter (que sofreu maus tratos também de Phil no começo do filme) começa a manipular e planejar vinganças contra Phil, que por sua vez continua descontando seus ciúmes, rancor e ódio em Rose por ter casado com George.
Esta situação pode ser entendida como um “Ciclo de violência doméstica” no qual é constituído de três momentos.
1. No primeiro o agressor mostra-se tenso e irritado por coisas insignificantes, chegando a ter acessos de raiva. Pode ocorrer, nesta etapa, humilhações e ameaças à vítima ou destruição de objetos.
2. Na segunda etapa existe a falta de controle do agressor. Toda a tensão acumulada na fase 1 se materializa em violência verbal, física, psicológica, moral ou patrimonial. Mesmo tendo consciência de que o agressor está fora de controle, o sentimento da mulher é de paralisia e impossibilidade de reação. Aqui, ela sofre de uma tensão psicológica severa e sente medo, ódio, solidão, pena de si mesma, vergonha, confusão etc. Observamos claramente esses dois momentos no filme nas relações entre Rose e Phil.
3. A terceira etapa constitui em arrependimento e ou comportamentos carinhosos. Também é conhecida como “lua de mel”. Consiste em um período relativamente calmo, em que a mulher se sente feliz por constatar os esforços e as mudanças de atitude, lembrando também os momentos bons
que tiveram juntos, até o início da nova crise, recomeçando o ciclo.
Por mais que no filme seja extremamente breve nesta terceira parte (não sendo o foco em si da trama), é importante entendermos as três etapas
para que possamos ajudar mulheres que estão na mesma situação. Existe um misto de medo, confusão, culpa e ilusão que fazem parte dos sentimentos da mulher, desencadeando o ciclo a recomeçar
Existe vários ciclos de violência que estão associadas a outros membros familiares como o intrafamiliar, extrafamiliar e autoagressão (se lesionar e suicídio). Todos os tipos de violência precisam ser interrompidos com ajuda competente. Fale sobre o assunto com outras mulheres, compartilhe
as informações.
No filme, o ciclo termina, assim como o nome filme sugere: com o ataque dos cães.
A referência ao nome do filme é do Salmo 22,20 “Livra-me da espada, livra minha vida do ataque dos cães”, que inclusive Peter lê no final. Em diversos momentos o filme mostra, literalmente, cães acompanhando o rebanho. Para você quem são esses cães? É Phil e seus maus-tratos? É Peter
com sua reviravolta no final do filme? São todos eles? É a violência em si? Fica a reflexão.
Um filme bom para assistir em todas as épocas, em especial na atual.
Nota: 7/10
Referências:
FILME: CAMPION, Jane “Power of the Dog” (Tradução BR: Ataque dos cães)
SAVAGE, T. “Power of the Dog”, Vintage, 2016. Versão referente ao livro de 1967.
MORAES, M. R.; RODRIGUES, T. F. Empoderamento feminino como rompimento do ciclo de violência doméstica. Revista de Ciências Humanas,
Viçosa, v. 16, n. 1, p. 89-103, jan./jun. 2016
BÍBLIA, A. T. Salmos. In BÍBLIA. Português. Sagrada Bíblia Católica: Antigo e Novo Testamentos. Tradução de José Simão. São Paulo: Sociedade
Bíblica de Aparecida, 2008.
INTITUTO MARIA DA PENHA Ciclo da Violência. Disponível em: www.institutomariadapenha.org.br/violencia-domestica/ciclo-da-violencia.html
(*) Rebecca Ferreira Carvalho é psicóloga com especialização em “Psicanálise e contos de fadas”. É mestranda em psicologia pela PUC/Campinas. Apaixonada por filmes, séries, jogos e animes. Escreve sobre como essas mídias se entrelaçam com nossa vida e nossa psiquê.
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