O meu personagem predileto no fluir e refluir dos dias confusos deste 2020, contra-ataca. O um metro e treze de um homem em formação pediu:
– Vamos brincar!
Guilherme, aparentemente atordoado pela vozearia, interrompeu o que se prenunciava em discussão das tias-avós e da avó. Afinal, o diálogo de temas variados alcançava decibéis cada vez mais altos. Brincando, Guilherme parecia não prestar atenção, só aparentava porque antes que a conversa descambasse de vez, abriu os braços e implorou:
– Vamos brincar!

Sem título – Aquarela – Verônica Novo
Esparramou a roda. Aceitamos mansamente o convite à “Dança das cadeiras”. E lá fomos nós rodar em volta das cadeiras de plástico, armadilhas para cada sentada que dávamos em meio às gargalhadas. Interrompemos os pensares nas mazelas de quem roubou quem, quando, como, o valor, que absurdo!!! Ah, e por ora, esquecemos se estamos ou já saímos do modo stand by.
Nesta fase de cancelamentos, discursos de ódio, débeis ideias, intolerância ao diferente, é um refresco, um Ki-Suco {um clássico da minha infância, eu preferia o de laranja}, brincar um pouco. Confesso, ao escrever isso gela-me a espinha dorsal pois é como se desse às costas à aflição das perdas, inúmeras perdas em todos os sentidos. Mas eu acredito ser vital à nossa sobrevivência e sanidade deixar de mirar o poço e contemplar a superfície. Por superfície imagino olhar as coisas visíveis, palpáveis, simples do corriqueiro existir. Vivemos duras experiências que nos tiraram do centro do Universo e nos reconduziram ao que somos: breves, desnecessários, insignificantes à engrenagem do planeta a girar incansável em seu próprio eixo. Somos predadores. A Terra, seus elementos, permanecem apesar de nós.
– Vamos brincar!

“Dança dos Planetas” – Aquarela – Verônica Novo
Como a brincadeira deu mostras de caos, o menino Gui retirou-se da ciranda e de fora comandou e colocou ordem em seu pequeno universo, seu sistema solar com seus três corpos celestes a girar. Como um Sol, no vácuo produziu a trilha a embalar nossa diversão. Sem vergonha, bruscamente findava a música no momento em que a avó pudesse se sentar na cadeira e vencer a dança. Tudo bem, é uma relação de amor, carinho e essa parcialidade nos divertiu também. Cansamos, o Guilherme queria mais. Antes das despedidas, momento de um longo ritual, sentamos ao redor da mesa para um café regado a risadas. Ali, o Guilherme discorreu a respeito do livro que quer escrever “para o mundo inteiro ler”. Nada humilde. Eu retruquei:
– O mundo inteiro, Gui?
– Sim.
– Mas o mundo inteiro é muita gente.
– Quanta gente?
– Puxei para menos para ficar mais simples a visualização e escrevi: 7.000.000.000.
– Isso é muito?
– Bilhões, Gui.
– Tudo bem, vou levar meu livro para todas as livrarias.
– E já tem nome seu livro?
– Pensou um pouquinho e cravou sorrindo: “História em família”, não, “Histórias em família”, corrigiu. A primeira é quando nasci e vai mudando de fase até chegar no céu.
– Como assim? Gelei.
– O estágio mais alto, onde a bisa está.
Comovida, {“…em toda a sua pureza, numa fase amargurada de construção.”, como escreveu, com maestria, a poeta Cecília Meireles} do lado oposto da mesa, mirei meu parceirinho, e, num hiato, sorri longamente diante de tamanha ternura.
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