Por Wanderley Garcia
O gramofone nos esperava no centro da ampla sala, ao lado do piano. Era o prenúncio da presença festiva do anfitrião Dr. Rodrigo Cambará que, de braços abertos, nos oferecia vinho, champanhe e caviar, como gostava de fazer nas páginas de O Retrato e O Arquipélago, os livros menos conhecidos, porém mais densos da trilogia O Tempo e o Vento. Talvez para Gloria, a recepção tenha sido de Sebastião Verissimo, externando simpatia e sensualidade, características que Erico pegou emprestado ao pai para atribuir a seu emblemático personagem ficcional.
As memórias de Erico (Solo de Clarineta volumes I e II) se misturam à obra maior do autor (O Tempo e o Vento). Juntos, eu e Gloria, nos insinuamos nos universos destas duas produções literárias no momento em que ultrapassamos a porta de entrada do Museu Dom Diogo de Souza, em Bagé, no Rio Grande do Sul.
O gramofone estava em silêncio, mas podíamos sentir a vibração das músicas de Bach e Beethoven com que Rodrigo-Sebastião, perfumado exageradamente, nos acolhia para um passeio pela história gaúcha. O mesmo acolhimento que sentimos quando, nas páginas de Erico, as palavras nos guiaram a um passado pesquisado, vivido, sentido pelo escritor.
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Pelas salas do museu se dividem (ou multiplicam) objetos a contar histórias que já estavam em nossas mentes e aguardavam uma centelha para explodirem em forma de lembranças vivas sob a narração de Erico. Inebriados pelo som imaginário do gramofone, avançamos pelas diversas salas do belo prédio e fomos encontrando personagens e cenas de O Tempo e o Vento em sua intensa narrativa da história do Rio Grande do Sul.
O Rodrigo que nos recebeu já caminhava para a meia idade e orgulhoso nos mostrava os objetos do museu. Estacou à porta de uma sala e com um gesto teatral de mãos, braços e ligeira curvatura do corpo nos convidou a entrar. Deparamos com trajes de gala da elite gaúcha dos séculos 19 e 20 e quando dou por mim, vejo Rodrigo, médico recém-formado, a dançar com a jovem Flora. Chamam minha atenção os chapéus que saem das prateleiras do museu para bailarem suspensos no ar. Coloridos os das mulheres. Cartolas pretas dos homens.
Deixamos o baile e fomos conduzidos pelo já maduro Dr. Rodrigo para a exposição de pratarias e porcelanas. Objetos importados, caros, que pertenceram às ricas famílias gaúchas. O anfitrião nos convidou para o banquete, servido pelas negras da casa, que produziam os mais variados sabores, mas deles não participavam. Rodrigo nos ofereceu cada prato, cada bebida com o orgulho de quem quer agradar e, principalmente, ser reconhecido.
Não pude deixar de notar as belas escarradeiras. De louça pintada, disfarçavam com arte a função que tinham. Lógico que nos bairros pobres de Santa Fé, como Barro Preto, Purgatório e Sibéria, este era um luxo que sequer se podia imaginar.
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Na sala seguinte, vejo um Rodrigo sério, sem nenhuma alegria a nos esperar à porta. A seu tempo, Sebastião nos dá as costas e se afasta lentamente, como a negar participação naquele espaço. Rodrigo se mantém impassível, mas traz consigo dores que renascem. Entramos na sala das guerras.
Chapéu atribuído ao militar Rafael Pinto Bandeira
Espadas, espingardas, pistolas, fardas, dragonas. Inúmeros objetos nos lembraram que o Rio Grande do Sul foi forjado nas guerras. No extermínio indígena, na demarcação do território com os castelhanos, nas disputas políticas internas entre maragatos e pica-paus, federalistas e republicanos, assisistas e borgistas. Cada objeto trazia uma história que Erico contou. Até que um chapéu prendeu minha atenção. Com duas pontas e um penacho, teria sido de Rafael Pinto Bandeira, militar, estancieiro e político que comandou tropas para garantir as fronteiras brasileiras, separando-nos dos irmãos castelhanos. Sob aquele chapéu estiveram os pequenos olhos com que Pinto Bandeira fitou Ana Terra e fez uma provocação ao pai da moça. Maneco Terra, numa frase, soube reagir: “Mas tem três homens e três espingardas em casa pra defender a moça”. Agora, os olhos de Lima Duarte devoravam Gloria Pires na minissérie da Globo que passava por mim enquanto eu observava aquele velho chapéu pontiagudo.
Os objetos nas prateleiras, relembrando as guerras, traziam algo de heróico e belo, ao mesmo tempo que escondiam o sangue que derramaram. É este sangue que Dr. Rodrigo tenta esquecer, o sangue de seu pai Licurgo, o do tenente Bernardo Quaresma, seu amigo na paz e inimigo na guerra, o de Lauro Caré, o sobrinho bastardo tornado herói.
No pátio interno do Museu vejo uma charrete, ou o pouco que ainda sobrou dela. Rodrigo não deixa de mostrar seu desapontamento com o objeto. Participou de maneira ativa na adesão de Santa Fé aos automóveis e vê naquela peça um exemplar retrógrado que deve ser deixado de lado. Mesmo com sua crítica, fui até o veículo com curiosidade. Se o Dr. Rodrigo não gostava daquele tipo de condução, muitos de seus antepassados a utilizaram para construir o legado que lhe coube.
Fachada do belo Museu Dom Diogo de Souza em Bagé
Voltamos ao salão principal. O gramofone continuava a tocar Bach e Beethoven apenas para mim e Gloria. Olhamos mais uma vez para o belo objeto e percebemos a um canto Sebastião Verissimo, fitando tristemente o aparelho com saudades. Silencioso, os olhos baixos evitaram os nossos. Estava já velho e cansado e o brilho sumira de seus olhos.
Pouco depois ressurgiu Dr. Rodrigo, despedindo-se de nós, dando-nos presentes e recomendações para nossas próximas paradas. Quando soube que iríamos a São Borja, disse que telefonaria para Getúlio para que nos recebesse bem. Virou as costas e se foi, deixando no ar as músicas e o seu perfume.
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