Cronicando

Um grito na multidão

por Maria Angelica
Publicado em 27 de agosto de 2020

Falo por mim. É um desabafo. A impressão que tenho é que uma casta seleta de pensadores, filósofos, coaches, gurus… tem a chave da nossa felicidade. Repito palavras e acrescento personagens: a impressão que tenho é que uma casta seleta de novos milionários… tem a chave para o nosso enriquecimento, só nós é que não sabemos fazer a “coisa” direito.

Que atire a primeira pedra quem ainda não deu uma busca no Youtube, viu o vídeo que os amigos e “amigos” enviaram via Facebook, Instagram (eu já enviei diversos e recebi um monte) para ter acesso às atitudes corretas e mudanças necessárias para sermos felizes. Os livros que devemos ler para alcançar o tão almejado bem-estar, o domínio da mente, das emoções, das ações, em como nos livrar dos sabotadores, das algemas, dos grilhões para sermos pessoas felizes, livres e, de preferência, ricas, milionárias. Basta clicar aqui, ali e ao final de toda explanação comprar o curso, o e-book, curtir, se inscrever, não se esqueça do sininho e… ASSIM, gritando, alguns mentores indignados dizem não conseguir entender como não ganhamos milhares de reais (irreal) tendo um celular e ferramentas às mãos. E nessa busca desenfreada, ávida por mudarmos de patamar, seguimos a enricar os que garantem ter o pote de ouro ao final do arco-íris. E nunca, pelo menos para mim, repito, senti tanta infelicidade e percebi tantas pessoas próximas e distantes quebradas emocionalmente e financeiramente. E tome lives – fenômeno que a pandemia disseminou como um vírus e eu já não suporto ainda mais quando o sinal da minha internet volta ao passado em seu círculo vicioso da espera. Não, não estou dizendo que não são importantes e como ajudam vários desses vídeos, seminários, aulas, lives… Mas me causa uma angústia, uma ansiedade diante de tantas possibilidades, ensinamentos e afirmações de que se você não fizer assim ou assado estará procrastinando; continuará a ser um tarefeiro; vai ser sempre empregado e liderado e não um líder e senhor do seu tempo, trabalho e, finalmente, aplausos, com muito dinheiro em conta. Todos têm o caminho da nossa satisfação, da nossa felicidade. Se não conseguimos é porque não estamos nos esforçando!

Estou amarga, não é? Não, não estou. É somente a certeza de que nada é simples assim. E haja imperativos! Nos bombardeiam com o faça, siga, se mexa, mude… Buda agiu assim; Jesus disse isso; Spinoza propôs a ética tal… absolutamente verdadeiro, lindo, maravilhoso. Então, por que, por que ando no mesmo passo errante e titubeante? Há pouco assisti a uma palestra sobre como mudar de vida, ser mais propositivo, senhor de suas decisões, como se preparar para o mundo pós-pandemia. Tive um princípio de catarse e depois, confesso, fiquei pior, me senti uma pedra que não sai do lugar, não muda a forma, só se for triturada por fatores externos. Esse sentimento piorou quando o palestrante perguntou se havíamos lido, ao menos, os dez mais importantes livros da literatura mundial. Meu mundo desmoronou quando tive a consciência que daquela lista eu li unzinho só, somente um, Dio mio! Aí o palestrante me empurrou mais para o buraco ainda ao dizer que se durante a pandemia você teve o privilégio de ficar em casa, pôde ler o que quisesse e necessitasse; tempo precioso que nunca volta, sempre o perdemos pelos vãos dos dedos; não teve que sair do conforto do seu lar para trabalhar, e não leu? Não estudou? Não aprendeu uma nova língua? O que cara pálida você ficou fazendo?!? Bem, não nessa amplitude toda, mas eu faço e fiz um pouco de tudo isso e por que continuo me sentindo vazia, desinformada, atrasada, pecando pelo menos e não pelo excesso?

“Conhece-te a ti mesmo”. Essa máxima estava inscrita na entrada do templo do deus Apolo, em Delfos, na Grécia antiga (século IV a.C.) e é repetida por muitos com facilidade, como faço aqui. Mas não é fácil nos conhecer. Nesse tempo de isolamento que já acabou (????) não sei se fui ao ou de encontro comigo, com meus demônios. Ocupo o espaço entre o mundo lá fora e aqui dentro da minha casa. Habito o mundo das mídias, do que mostram os jornais, telejornais e o que vejo a cada saída, pois tenho que fazer isso. A OMS – Organização Mundial da Saúde, afirmou que viveremos à mercê da pandemia por pelo menos dois anos. Terei tempo de sobra para melhorar meu repertório? Não posso afirmar. Só sei que a cada dia sinto falta do que, para mim, tão bem caracterizava a sociedade brasileira: os abraços, os beijinhos… Os bares estão cheios, os restaurantes também, nos parques públicos a maioria caminha e corre sem máscaras, mas, que triste, temos que nos beijar pelos cotovelos, nos abraçar pelos calcanhares…, e a máquina de moer gente enroscou lá no topo da curva e não desce nunca. As mortes continuam, deste mal e de outros males também, como o desemprego. Em Campinas, como em toda grande cidade, os antigos moradores de rua têm a companhia dos novos que perderam o trabalho, o sustento já tão precário. Aí, a única saída foi a porta da rua. O Novo Coronavírus deixou mais evidente a velha mazela brasileira, a desigualdade, imensa. Eu sempre dou de cara com ela. Não, claro, nas lives, nas palestras, nos vídeos do Youtube. Está despida na rua.

Na Álvares Machado, perto do camelódromo, descia aos soquinhos, cambaleante a nossa desigualdade de cada dia. Um homem velho, calça amarrada com uma corda, exato, uma corda. Seu nome? Quantos anos? Sei lá! Seria um pensador, um tarefeiro; saberia línguas; quantos livros leu; se leu; mora em algum lugar? Eu parei para olhar porque aquele balançar para frente, para trás, para os lados, quase caindo, me deixou apreensiva. Um homem emagrecido pelo sofrimento da invisibilidade. Esquecido na multidão, pois é, havia uma multidão no centro da cidade e eu somava-me a ela. E ele ali, uma ausência, uma sombra, com a boca aberta queria gritar, gritava um grito mudo, se esforçava para produzir algum som… Ninguém o ouvia, ninguém o via ali trêmulo no passo a passo de sua vida cambaleante.

 

Fotos: Maria Angélica Pizzolatto – Carlos Eduardo Pizzolatto

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