Cinema Literal

Um Almodóvar com sabor de Almodóvar

por João Nunes
Publicado em 12 de julho de 2019

Fui ver “Dor e Glória” (Pedro Almodóvar, Espanha, 2019) sem ter lido nada sobre o filme. Meu inconsciente pode ter estabelecido tal procedimento como estratégico, mas nem isso me passou pela cabeça. Ah, sabia da passagem dele pela competição oficial de Cannes, em maio, e que produção marcava o reencontro do cineasta com Antonio Banderas, parceiros no delicioso “Ata-me” (1989).

O desconhecimento foi revelador. Lá pela metade do filme eu me dei conta de que Almodóvar narrava a própria história – um melodrama dos bons – e tocava fundo a questão homossexual, sem bandeiras, palavras de ordem ou discursos. Em nenhum momento, até então, eu levei em conta o tema do filme; o mote passou de modo suave pela minha mente.

Para mim, pouco interessava saber se o protagonista era ou não gay. Eu estava, simplesmente, diante de uma boa história. E a razão está no quanto o diretor espanhol acumulou informações ao longo do tempo e as soube aplicá-las (a diferença com “Ata-me” no modo de conceber e realizar é abissal) e de como ele foi se aquietando e se especializou na minúcia, no detalhe.

O resultado é que estamos diante de um Almodóvar de primeiro nível porque ele trabalha, justamente, o essencial. A começar pelo primoroso roteiro escrito como se fosse um quebra-cabeças no qual ele vai preenchendo os espaços até tudo se completar e formar uma imagem.

O mesmo se pode dizer da edição. Ela acontece com suavidade: a cena termina onde tem de terminar e recomeça com outra no ponto certo, na marca perfeita. Almodóvar não precisa mais de malabarismos cênicos ou de câmera. O ritmo é outro, o adjetivo impetuoso de “Ata-me” virou caudaloso em “Dor e Glória”.

Como um movimento atrai outro, idêntico procedimento ocorre também na encenação. Não há os excesso dos primeiros longas e tudo parece sereno, delicado, equilibrado dando ao elenco a segurança necessária para realizar bem o trabalho.

E, o mais impressionante, Banderas, um bom canastrão em “Ata-me” faz em “Dor e Glória” o melhor papel da carreira dele. O espectador acredita no que está vendo: um homem doente e fragilizado, mas plácido, jamais levanta a voz, tem convicção do que quer e sabe por onde ir. Um ator inteiro em papel inesquecível.

A delicadeza da direção de Almodóvar é comovente. Como quando o protagonista passa do estado normal para uma viagem à base de heroína que o leva à infância. Ou a conversa com a mãe idosa que não gosta que ele utilize as amigas dela como inspiração para criar personagens – conversa linda, afetuosa, cheia de significados.

Apesar de ser um melodrama, ele não deixa o humor de lado; antes, cria-os em meio à situação, como o “debate” com a plateia após a exibição de um filme do protagonista, o cineasta Salvador Mallo (Antonio Banderas).

Só depois que terminei de escrever fui ler sobre a obra do diretor espanhol e descubro que Banderas foi premiado em Cannes. Merecidíssimo. Alguém há de objetar: como sendo crítico de cinema não tinha essa informação? Ocorre que me dei um ano sabático no qual vi poucos e pontuais filmes. Queria sentir a sensação de ir ao cinema com prazer e não a trabalho. Estou voltando aos poucos. E em que bom momento: “Dor e Glória” vale cada fotograma.

PS. O filme toca um trecho de “A Noite do meu Bem”, da brasileira Dolores Duran, e dá o crédito à costarriquenha Chavela Vargas.

Veja a programação do filme em Campinas.

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