Cronicando

Tormentas

por Maria Angelica
Publicado em 2 de julho de 2020

As tormentas passam. Posto desta forma parece uma constatação simplista da vida; bem a vida é, em sua essência, simples. Gestar, nascer, viver, morrer. Simples assim não fosse a complexidade que nós humanos nos envolvemos ao longo da nossa existência afetiva, profissional e no âmbito das relações sociais. A imagem que faço sobre isso na minha mente é a de uma teia de aranha, perfeita, tecida com cuidado.

Foto: Eulâmpio Neto

Ao nos deparamos com uma teia, a impressão que temos é de fragilidade, mas é só uma impressão. Os fios de seda são tão ou mais resistentes que o aço. No centro de tudo, a aranha tecelã acompanha as pequenas e grandes quedas de ciscos e presas capturadas em sua obra de arte. O que não serve é jogado fora. Somente permanece o que de bom possa alimentá-la ou que sirva para a cópula, refúgio… Faço dessa a analogia da nossa vida. A construímos com finalidades que vão do amor ao ódio. Quando as dificuldades, os tropeços, as agonias desabam na “teia”, percebemos como ela é forte. Mas, não raro, os ventos, as tormentas, em maior ou menor escala, nos impactam de tal forma que perdemos o compasso do tempo em manter limpa essa “teia”; demoramos a eliminar o que não presta e os fios se rompem, se desconectam do centro.

Foto: Eulâmpio Neto

Foto: Eulâmpio Neto

Uma teia de aranha. A imagem particular que uso para explicar os percalços pelos quais passei e como, ao não querer olhar nos olhos desse “monstro”, fui adoecendo. É incrível como nos tempos atuais ainda tememos em aceitar nossas fragilidades, por medo, ignorância, questões financeiras e sobretudo por preconceito. Postergamos a busca por tratamento. Séculos atrás milhares de pessoas foram condenadas à fogueira por sofrer algum distúrbio psicológico. Do ponto de vista da antiguidade, como a idade média, por exemplo, é possível compreender a falta de conhecimento que levou à condenação milhares de vidas; mas nos dias de hoje, não! No meu caso, demorei a procurar ajuda, além da terapia, de remédios. Pronto, o estrago estava feito, perdi a conexão de fios importantes de mim mesma. Quando tive condições financeiras e aceitação, foram várias idas e vindas em divãs e uma resistência sem fim aos medicamentos. Ninguém gosta de ser refém dos remédios. Era uma lista extensa. Quando melhorava, abandonava o tratamento. Piorava de novo, voltava a depender do “equilíbrio” químico para conseguir vencer o pânico, a ansiedade, a depressão; não havia a conexão perfeita dos “fios” da minha “teia”.

A verdade é que passei anos com um receituário que às vezes aumentava, outras diminuía. Fiquei apreensiva quando teve início o isolamento imposto pela quarentena por causa da Covid-19. Pensei: “Será que vou piorar?” Isso porque ao mesmo tempo em que o mundo se defrontava com um adversário poderosíssimo, ainda que invisível, eu me deparava com mudanças de rumo pessoal. Novamente, parei no pronto-socorro. Sabe aquela sensação de que o túnel não acaba nunca? Que não se vê luz? Que debaixo de uma fina casca de gelo a pressão é enorme e você não consegue quebrar um pedaço que seja e abrir uma fresta para poder respirar? Então, mas a vida também é repleta de surpresas maravilhosas. Esta semana, anos depois do início do tratamento e quase sete meses após desordens internas e externas causadas pela perda do trabalho e do fim de um relacionamento, ambos de décadas, eu me libertei do fio da navalha de algumas medicações. Só quem passa por isso pode imaginar como é horrível a dependência de drogas lícitas. Ao sair do consultório da minha médica eu caminhava como se andasse em nuvens. Imagino, guardada a devida proporção, o que é se livrar do vício de outras drogas ilícitas e lícitas como bebidas, cigarros… Abri um sorrisão ao mesmo tempo em que abria a porta do consultório da minha psiquiatra. Pela primeira vez, em anos, ela, e não eu, tirou dois dos três remédios da minha “dieta” diária. Nossa, como agora a dosagem de meu dia a dia está mais leve; retomo o controle das minhas emoções sem esses coadjuvantes. Neste momento em que compartilho essa íntima experiência posso garantir: as tormentas vêm e vão e é importante ter paciência para aprender a se equilibrar em mar revolto e, então, aproveitar com prazer a calmaria quando ela chega.

Para exemplificar bem essa sensação, recorro ao pensamento do ensaísta e escritor francês Joseph Joubert (1754-1824):


“Você não pode evitar que a dificuldade bata à sua porta; mas não há necessidade de oferecer-lhe uma cadeira.”

Pois é, pela primeira vez, desde há muito tempo, escancarei a porta da minha casa e mostrei o caminho da rua para vários desses problemas.

Compartilhe

Newsletter:

© 2010-2025 Todos os direitos reservados - por Ideia74