Cronicando

TOC, toc!

por Maria Angelica
Publicado em 29 de abril de 2020

Seis meses depois de entrar em cartaz nos cinemas de Campinas e sair da programação, eu, enfim, criei coragem para assistir ao filme “Coringa”, dirigido por Todd Phillips e com Joaquin Phoenix como protagonista. Pelo trabalho, Phoenix conquistou o Globo de Ouro e o Oscar 2020 como melhor ator. Essa versão de “Coringa” em nada se parece com outras versões, só para citar as mais famosas, a de 1989, com Jack Nicholson; Heath Ledger, 2008; Jared Leto, 2016; todas repletas de cenas de ação e efeitos especiais. O Coringa desses intérpretes quer que Gotham City e o Batman se explodam.

Confesso, eu que sempre torci para o Batman, até fiquei com pena do atual “Joker”. Como não “balançar” depois de mais de duas horas acompanhando o drama de Arthur Fleck (Joaquin Phoenix); um palhaço que sobrevive de bicos nas ruas de Gotham City e sonha ser comediante de stand-up. De casa pro serviço, do serviço pra casa, Arthur é, digamos assim, uma vítima: sofre agressões físicas, preconceitos, incompreensões, solidão ao lado de uma mãe doente.

Bruce Wayne é só uma criança, ele nem sonha em ser o Batman. O pai do futuro super-herói, Thomas Wayne (Brett Cullen), um empresário corrupto, é nessa versão do filme o antagonista do Coringa. Thomas representa o que há de pior dos milionários e dos políticos “salvadores da pátria” em uma metrópole em convulsão, povoada pela miséria em todo canto, beco, encruzilhada.

Bem, o que escrevo não é nenhuma novidade e já foi contado, recontado, analisado pelos fãs desse filme de 2019. E eu não entendo nada de psicologia, antropologia, sociologia, filosofia e uma gama de ciências que destrincham a sociedade e seus “Coringas”. Mas eu vivo em Campinas, retrato de um país povoado por milhões de miseráveis e abandonados em ruas, favelas, cortiços piores ou menos piores. É só uma questão de um “teto”, quando existe um, sempre prestes a ruir. Vejo essas imagens diariamente aos sair do sossego quase insano do meu isolamento. Estão logo ali à vista, quem quiser ver que veja. E por que falo do filme “Coringa”?

Toc, toc! Quem é? É uma brincadeira de criança. Nesse “Coringa” o que mais me “pegou” foi quando Arthur Fleck, após sofrer todo tipo de discriminação, perde o controle de vez e quem assume é o vilão. A violência implode o palhaço. Gotham City é tomada pela revolta da multidão alucinada. Não tem como não nos remeter ao nosso cotidiano.

Toc, toc! Quem é? Sentada em meu sofá acompanho passiva o desespero de familiares ao perderem seus pais, mães, filhos, tios, tias, avós, avôs, amigos para a Covid-19, enquanto políticos no Brasil insistem em brincar de “a bola é minha”.

Toc, toc! Quem é? Séculos de concentração de renda e investimentos em educação, moradia, segurança, saúde perdidos em negociatas. O resultado não poderia ser outro: profissionais de saúde à beira de um ataque de nervos; doentes, não têm como atender a todos; não têm covas para tantos corpos de uma só vez.

Toc, toc! Quem é? Assistimos à elite política e empresarial oferecendo migalhas a quem morre de fome. Essa imagem me traz à mente a aquarela do pintor e desenhista Jean-Baptiste Debret, “Um jantar brasileiro”. Na obra de arte, o artista francês retratou uma cena comum no Brasil de 1827 por ele assim descrita:

“No Rio de Janeiro e em todas as outras cidades do Brasil, é costume, durante o tête à tête de um jantar conjugal, que o marido se ocupe silenciosamente dos seus interesses e a mulher se distraia com os seus negrinhos, que substituem a raça dos cachorrinhos ‘Carlins’, quase extinta na Europa.”

É inacreditável que 193 anos se passaram desde que Debret retratou essa cena e ainda milhões de brasileiros vivam de migalhas. As doenças como dengue, chikungunya, gripes, desnutrição continuam a dizimar milhares de pessoas. Não é novidade a ninguém que o sistema de saúde do Brasil vive no gargalo, com falta de infraestrutura, profissionais, insumos. Dificilmente vamos ver políticos ou milionários buscando socorro em hospitais e postos públicos, seria quase uma ficção isso. Mas, o brasileiro comum não tem outra saúde, opa, saída. Sim, dirão: outras doenças e mazelas brasileiras matam mais, mas a diferença é que não estamos à altura de combater esse inimigo chamado Coronavírus, ainda não há uma vacina eficaz contra ele. E mesmo assim assistimos atônitos a brigas políticas, discursos frios, falta de empatia com a dor alheia.

Toc, toc! Quem é?

Ninguém!

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