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“Terra Firme”: trágica crise migratória nas águas do Mediterrâneo

por César Póvero
Publicado em 4 de novembro de 2013

É com grande atraso que chega a Campinas o filme italiano “Terra Firme” (“Terraferma”) do diretor Emanuele Crialese (em cartaz no Cineflix do Galleria Shopping. Veja a programação). Produzido em 2011, já participou de vários festivais internacionais e facilmente pode ser encontrado na internet para ser visto, mas só agora ganha uma inesperada exibição na cidade. Talvez essa exibição e atenção voltada ao filme tenham a ver com a recente tragédia que deixou mais de 110 mortos, inclusive crianças, provenientes da Somália e da Eritreia, que tentavam atravessar o Mediterrâneo até a ilha de Lampedusa (sul da Itália) para adentrar a União Europeia, muito próximo da história retratada no filme.

Independentemente de qualquer coisa, “Terra Firme” é um excelente filme que mostra de forma contundente esses imigrantes e sua luta para conseguir uma nova chance de vida em solo europeu. Algo próximo do que acontece com os milhares de mexicanos que tentam atravessar a fronteira com os Estados Unidos, todos os dias, pagando muitas vezes com a própria vida em busca de uma existência mais digna.

Em “Terra Firme” acompanhamos o típico cotidiano de uma família italiana e sua subsistência nas ilhas Pelágias (composta pelas ilhas de Linosa, Lampedusa e Lampione). Localizada no extremo sul da Europa, mais próximo do continente africano do que propriamente do território europeu, a ilha vem há anos sendo o primeiro porto para essa leva de imigrantes. A população reclama do descaso com que o governo italiano vem tratando a situação, principalmente pelo grande impacto que este fato causa nas pequenas vilas de moradores e pescadores, que ainda não possui hospital, apenas um pequeno pronto socorro e a drástica diminuição de renda em uma das grandes fontes de subsistência dos nativos de Lampedusa e Linosa: o turismo.

O drama é focado no jovem Filippo (Filippo Pucillo) que trabalha em um barco de pesca junto com o avô e se diverte levando turistas para conhecer a ilha, enquanto estão hospedados em sua casa. O cotidiano dessa família siciliana é alterado quando Filippo salva uma jovem mulher grávida e seu filho de morrerem afogados ao testemunhar, em uma madrugada em alto mar, uma dessas travessias. As leis do governo são colocadas em xeque com uma das grandes leis dos pescadores: nunca abandonar alguém no mar. Assim, Filippo e sua família, contrariando a polícia costeira, envolvem-se em uma situação complicada ao abrigar essas duas pessoas.

Crialese filma com bastante desenvoltura essa história permeada com um grande senso de justiça social, humanidade e amor ao próximo. Seus personagens são críveis, falíveis, o que os tornam extremamente humanos em seus arroubos de heroísmo ou contradições. Com um elenco coeso, com grandes atores italianos (Donatella Finocchiaro, Beppe Fiorello, Mimmo Cuticchio e Claudio Santamaria), destaca-se a participação do jovem Filippo Pucillo, natural da região, da ilha de Linosa, que foi descoberto por Crialese e revelado no filme “Respiro” (2002), com apenas nove anos de idade. É através do olhar pueril de Pucillo que acompanhamos sua/nossa incredulidade e não aceitação da tamanha barbárie cometida contra outro ser humano. Como ele próprio é um morador da ilha, esse olhar vem imbuído de veracidade por já ter presenciado situações semelhantes, sentindo na pele como esta conjuntura sociopolítica os tem afetado, tanto financeiramente quanto emocionalmente.

Veja abaixo a entrevista que fiz com o ator Filippo Pucillo para o Campinas.com.br: 

Como surgiu a oportunidade de trabalhar com Emanuele Crialese em “Respiro” (2002), primeiro filme que fizeram juntos?
Naquela época eu tinha 9 anos, era agosto e estava preparando, com os meus amigos, a festa do “San Bartolo”. Arrumávamos lenha pra fazer uma fogueira e ganhava quem fizesse a torre de madeira mais alta. Emanuele passou e me perguntou: “o que vocês estão fazendo?”. Eu expliquei o que acontecia, ele pegou uma câmera de vídeo e nos filmou. Eu achava que ele fosse um turista curioso quando começou a me ajudar a carregar as madeiras sobre o carro dele pra que, com meus amigos, pudéssemos ganhar. Depois de uma semana voltou a me procurar e me disse: “está pronto pra gravar?”. Eu respondi: “gravar o que?”. “Um filme no qual você será ator!”. Eu era criança e não estava interessado em ser ator de jeito nenhum, mas ele já era um grande amigo e, para que ele não ficasse chateado, aceitei.

Como foi retornar a parceria com o diretor Crialese em “Terra Firme”, após duas experiências anteriores (“Respiro” e “Novo Mundo”)? O que mudou? Existe plano para um novo projeto juntos?
A oportunidade de ser o protagonista em “Terra Firme” foi uma coisa tão grandiosa que nunca poderei esquecer. Quando ele me falou que tinha um novo projeto e que iria gravá-lo na ilha de Linosa, que eu gosto muito, nem acreditei. A cada dia eu via a história crescendo e muitas vezes falava das minhas experiências com os imigrantes que chegavam às ilhas Pelágias. Por enquanto não temos nenhum projeto, mas quem sabe em algum outro ele possa vir a me convidar novamente.

Esses personagens, nesses três filmes dirigidos por Crialese, foram escritos especialmente para você?
Em “Respiro” e em “Terra Firme” eu faço praticamente eu mesmo, especialmente em “Terra Firme”, onde me chamo Filippo como na vida real. Crialese, no roteiro, escrevia meu personagem como sou, mais ou menos, de verdade.

Fazer um personagem próximo às situações vividas e vistas por você como habitante de Linosa facilitou ou dificultou no momento de fazer o filme?
Facilitou muito porque me sentia em casa, o cast do filme era minha família, tínhamos uma sintonia única que dificilmente acontece em outros filmes.

Você já presenciou algum fato parecido com os que são narrados em “Terra Firme?
Antes de fazer “Terra Firme” estava no barco do meu pai pescando, vimos um barco de imigrantes em dificuldades e lançamos salva-vidas para quem estava ao mar e os colocamos dentro do nosso barco.

Confira o trailer:

 

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