Pensar Psicanalítico

Sobre a culpa, a responsabilidade e a possibilidade de ter alguma renovação na vida

por Vagner Couto
Publicado em 23 de dezembro de 2023

 

“Não tenho culpa de ter nascido”. Ou tenho… – já que não dei meu jeito de ficar perfeito na minha encarnação anterior?

Trago este pensamento para gerar uma reflexão que viabilize um revolvimento que viabilize uma renovação do nosso espírito natalino e existencial, o que é quase uma exumação psíquica e espiritual de dores e angústias ancestrais.

Muitas vezes, fico a olhar esse lugar contemporâneo que invariavelmente encontro na clínica psicanalítica na condição de escutador – dos outros e de mim: o lugar de sentir culpa por alguma coisa, por ter feito ou não ter feito, por falar ou por ter calado, por recusar ou por ter aceito, por ficar ou por largar, por querer demais ou querer de menos, por pertencer ou não a um grupo, por não corresponder a expectativas que foram estabelecidas por si ou outros, por ser quem se é ou por não ser nada, e até mesmo por, simplesmente, existir.

Em muitos casos, até uma milenar culpabilização pela crucificação de Jesus nos foi imposta pela cultura – o que faz muita gente carregar desnecessariamente uma cruz que é só um símbolo para a sua transformação e evolução. Uma cruz feita de mundo e espiritualidade, de horizontalidade & verticalidade, de luz e inspiração. A cruz de Jesus, que dizia: “Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração, e encontrareis descanso para a vossa alma. Porque meu jugo é suave, e o meu fardo é leve.”

Nada disso é pouco, ou inverdade, ou melindre, necessariamente. Eu próprio já carreguei durante anos a culpa de ser um mal cristão, um “fracassado” – palavra que ouvi de pessoa muito próxima a mim – e eu era o culpado daquilo, dizia a acusação, por incompetência, fraqueza, preguiça e outros motivos. Acreditei ser um “fracassado” durante anos, e a culpa de ter acreditado naquilo eu não posso negar.

Bem… – com o tempo, eu pude fazer uma alquimia, uma transmutação daquela palavra que queimava como brasa – “fracassado” – e ela foi ressignificada ao seu oposto, na medida em que me compreendi melhor, e a realoquei ao devido contexto dos valores que me são pertinentes. Assim, vendo o que eu realmente fiz de minha vida, e quem eu havia me tornado como ser humano, pacifiquei. Desta forma, ficou para mim estabelecido que conhecer e compreender a si mesmo é a pedra de toque filosofal para transformar o chumbo de si em ouro de si – e de mim – o que ainda está em processo, claro! Meus amigos, e outras pessoas também, sabem disso muito bem…

O QUE É A CULPA?
Para a Psicanálise, a culpa é um sentimento baseado na frustração, e aparece quando reprovamos nossas ações – ou quando nos reprovam. Se precisávamos daquela aprovação pra viver, é o caos. Mistura-se, nisso, a culpa que realmente estamos sujeitos a sentir por nossa própria consciência e a culpa que nos impingem, que assumimos ou adotamos como se fosse nossa.

A culpa está ligada à violação dos nossos valores, crenças e moral. Profundamente estudada por Freud, ela é apontada como o grande problema do desenvolvimento da nossa civilização, estando verdadeiramente presente na estrutura do desejo humano. Ela se manifesta de muitas maneiras – indo do remorso à angústia e ao comportamento neurótico, passando por arrependimento, compunção, lamentação, penitência, remordimento e autojulgamento, cujas sentenças são invariavelmente injustas – porque não somos aptos a julgar nem a nós mesmos, o que muitas vezes fazemos de forma muito dura ou sem a sinceridade necessária.

Se envolvidos pela culpa, há o sentimento permanente de uma dívida a pagar e uma punição a cumprir, tudo isso mesclado com o arrastar pedras e o ranger de dentes – afora uma dor crônica em um lugar que não se sabe onde, provocadora de desamparo e de sentimento de permanente rejeição a nós mesmos.

Quer dizer: o nosso jugo – e o dos outros, não é leve. Na culpa, sentimos que não somos nós mesmos. Não encontramos lugar, experimentamos algo como rejeição ou iminência de morte, uma falta de lugar, de naturalidade, um desajeitamento com a vida. Sentimo-nos como estranhos, como se algo se interpusesse entre a natureza e nós – como se dela tivéssemos sido alijados. A vida não nos acolhe e nem acolhemos a vida. É algo como uma vergonha sem nome.

O sentimento de culpa também pode ser caracterizado como falta de humildade e de amor próprio, falta de discernimento, de conexão e de acolhimento quanto a nossa natureza primitiva ainda em evolução, ainda no processo de aprimoramento e transformação. E é, ainda, fundamentalmente, uma arrogância não nos permitirmos errar, com autoexigências exageradas. A culpa vem justamente (!) quando não somos capazes de fazer essa inflexão, e sentimos culpa até mesmo quando um resultado ou uma situação eram inevitáveis ou fora do nosso controle. Se assim, por não compreendermos a essência da realidade e nos perdendo no emaranhado de idealizações sobre nós mesmos, normalmente travestidos por um ar de bonzinhos, evoluidinhos (as) ou beatinhos (as). Ou seja: travestis espirituais que não assumem sua incompletude, insuficiência e imperfeição.

A RESPONSABILIDADE
A culpa, ou a culpabilização, na sua forma desejável e construtiva, seria assumir a responsabilidade com a consciência que nos cabe por algo acontecido, ou não (que deveria acontecer): “errei”. Com isso, buscando aprender e corrigir o que for necessário numa continuidade de caminhada. Isso é o que Freud chamou de tensão entre o eu real e o eu ideal, e que ele considerava ser um enfrentamento do eu ante a sua instância crítica, o superego, se colocando a dar uma resposta, uma satisfação. Na falta disso, o sentimento de culpa se faz uma doença. Com a autorresponsabilização, uma cura.

O que está em jogo aqui é a possibilidade de uma vida mais leve, fluida, pacificada e, mais ainda, com alguma felicidade – numa civilização que tem como elemento principal a imputação de culpas, o que torna a busca do ser humano pela felicidade uma empreitada quase insuportável. Quanto mais se busca a felicidade, maior a culpa por não a encontrar.

Ora, o ser humano se apresenta definitivamente como aquele que “é” – simultaneamente mergulhado no devir, no vir-a-ser. É inegável que podemos refletir e entender nossa real responsabilidade dentro de uma situação. Isso está diretamente ligado com um autoconhecimento mais apurado. Reconhecendo qual foi a real intenção e a nossa responsabilidade numa determinada situação, podemos corrigir o que for necessário, aprender, transformar-nos e evoluir, graduando nosso psiquismo e nossa essência espiritual.

Com isso, abrimo-nos ao verdadeiro sentido da existência. Quando isso ocorre, a culpa transmuta-se e supera-se a si mesma, renunciando a seu processo de desintegração do sujeito. Assumindo a responsabilidade, não mais faz sentido se atormentar pela culpa. Assumindo nossa humanidade imperfeita, incompleta, inconstante, podemos encontra mais paz e fazer valer essa vida, essa encarnação, com muito mais graça, beleza e leveza. Pois o fardo é pra ser leve…

 

COMO LIDAR COM TUDO ISSO? Psicanálise, terapia, autoconhecimento – algo assim.

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VAGNER COUTO, psicanalista, com especialização em Psicoterapia Psicanalítica Breve e aperfeiçoamento em Psicoterapia Psicanalítica de Casais, já criou e coordenou a realização de mais de 50 simpósios e outros eventos psicanalíticos e na área de saúde mental junto a instituições como Associação Brasileira de Psicoterapia Analítica de Grupo, Núcleo de Estudos Psicológicos da Unicamp e Sociedade Psicanalítica de Campina, entre outras. Nesse ambiente, trabalhou com Gaiarsa, Marta Suplicy, Rubem Alves, Maria Helena Matarazzo, Paulo Gaudêncio, Vera Lamanno, Antonio Muziz de Rezende, Marina Colasanti e Roosevelt Cassorla, entre outros. Tem profunda vivência em práticas holísticas de saúde mental em instituições como Brahma Kumaris, Instituto Eneasat e Laboratório de Práticas Dialógicas. Tem mais de 40 anos de vivência em instituição dedicada ao autoconhecimento, à expansão da consciência e à espiritualidade. Poeta e escritor, é autor dos livros “Admirável momento novo” e “A estrela da manhã”. Jardineiro, ama cultivar pessoas e cuidar delas.

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