Cronicando

Remexendo nas reminiscências

por Maria Angelica
Publicado em 15 de julho de 2020

Na semana passada publiquei não uma crônica mas sim o conto “A Cela”. Esqueci-me de dizer que ele foi escrito na verdade em 1984, quando terminava a faculdade de Comunicação Social na Puc-Campinas. Claro, fiz algumas correções, não tem como. Ultimamente, é tanto tempo dentro de casa e aí você parte em busca de “outros” tempos. Eu tenho revisitado os meus “escritos”, a maioria, poemas e contos, está em um caderninho velho, amarelado, sem capa. Um punhado está digitado em folhas soltas. Eu nunca havia escrito crônicas, comecei aqui neste blog, “Cronicando”, este ano assim que começou a pandemia da Covid-19 e o isolamento. Agora, vou publicar um outro conto, também velhinho, de 1987. Fiz também, obviamente, correções. O conto desta semana se chama “A Fuga”. Por que publiquei esses dois contos? Porque os achei bastante atuais, trouxeram-me para os dias de incertezas, inseguranças e acima de tudo, solidão, ausências. Compartilho com vocês a minha “Fuga” de 33 anos atrás que permanece até hoje. E me pergunto, uma vez mais: “Do que estamos fugindo? Para aonde fugimos? O que são essas lembranças que ficam impregnadas em nós, na materialidade do nosso espaço físico e psíquico?” Não sei, eu ainda estou na minha “Cela” e ao mesmo tempo em “Fuga”. E você?

 

                                                                “A Fuga”

Abro meus olhos lentamente. Fixo meu olhar no teto. Observo as teias de aranha nos cantos do quarto. As folhas dos livros, em cima da escrivaninha, brincam com o vento, do prefácio ao epílogo. As cortinas puídas movimentam-se em uma dança melancólica. É estranho o cheiro desta manhã, deste silêncio mórbido. Subitamente uma rajada de vento enfurecido abre a porta e provoca um longo e ardido ranger das dobradiças. O passado se faz presente nessa velha casa. Lá fora, uma chuva fina cai do céu acinzentado. Visto-me demoradamente. Coloco-me em pé ante pé em direção à escada empoeirada e corroída. Ouço sons na sala de estar, é o barulho de um programa qualquer da TV ligada solitariamente. Meu pai não está frente à sua única companhia desde a morte de minha mãe.

– Pai, onde está o senhor? Deve estar dormindo, penso!

Ao mover a maçaneta da porta a abrir-se à rua, uma claridade intensa machuca meus olhos. Antes de sair, coloco os óculos escuros, a blusa com um capuz para me proteger da garoa. Nenhum carro. Nenhuma pessoa. As ruas desertas provocam-me uma aflição. Papéis, latas, lixos de toda espécie rodopiam na ciranda da poeira em funis diversos. É um balé soprado. O relógio da Catedral barroca parou. Começo a andar por essa megalópole repleta de prédios em contraposição aos velhos casarões sem o sopro de vida; becos sem saídas; ladeiras solitárias. Noto as poucas árvores, estão morrendo ou revivendo? Vejo as portas dos bares, restaurantes, casas abertas sem boas-vindas. Os monotrilhos passam em intervalos regulares, mas vazios. Posso ficar eternamente bem aqui no meio dessa avenida sem risco algum.

Admito, estou inexplicavelmente só, bem debaixo dessa arquitetura decadente, envolvida por essa quietude tão sonhada por mim. Meu corpo é tomado por uma música. Meus lábios movem-se ao compasso do adágio de Albinoni. Passo, assim, horas caminhando sem rumo. A cada instante a angústia cresce no ritmo da noite que se avizinha. Os pingos da chuva ficam mais fortes. Corro, sim, eu corro em disparada de volta à minha casa. Mas, só há ausências. Busco em todos os cômodos alguém, por alguém; não encontro. Retorno à rua, entro em um, em outros tantos carros, não ligam. Tento encontrar alguma saída desse pesadelo em que me encontro, entretanto, sinto o verdadeiro e sinistro labirinto de onde não posso sair.

– A noite está aqui, sussurro.

Noite. Medo. O nada a rodar. Meu corpo a girar, a girar. Caio de joelhos e então digo:

– O trem, sim, o trem está funcionando, eu vi!

Fujo em disparada à estação como um prisioneiro foge de seu algoz. Na plataforma a mesma cena de outros sítios: nada, ninguém. Ouço o apito. Um trem aponta no túnel precedido de suas luzes amareladas. Ele passa por mim e não para. Um desespero apodera-se da minha mente quando outro trem, veloz, segue o primeiro. Não há condutor, não há passageiros.
Desço a escadaria da estação em direção ao centro da cidade. Olho em minha volta, busco o vago horizonte desolado. Na passarela suspensa um outro monotrilho cruza a estrutura cercada de ferro. Volto meus olhos assustados aqui embaixo e, em um ímpeto, retorno à plataforma na velocidade entre o parar e o correr. De repente uma breve alegria. Vejo em um dos vagões uma pessoa. Esboço um sorriso de alívio. Na passagem quase em câmera lenta, nos olhamos fixamente. Um calafrio invade-me. Perplexa digo a mim mesma:

– Não pode ser. Sou eu lá dentro do trem?

A máquina arranca em disparada e eu a correr alucinadamente, gritando. Paro. Só agora percebo que já não estou mais aqui.

 

Fotos: Maria Angélica Pizzolatto

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