Cronicando

Relatos Selvagens

por Maria Angelica
Publicado em 8 de outubro de 2020

Alguns relatos recentes me chocaram. Histórias semelhantes em sua crueldade. Todas sobre sacos plásticos cheios de gatinhos, filhotes. Poderiam ser sacos de cachorros, de periquitos, de lagartixas, sei lá, o bicho que fosse. Mas, eram gatinhos. De alguns, os motoristas desviaram do “lixo” ensacado que se mexia no meio da via. De um deles, não! Chocada, com os olhos cheios de lágrimas, minha irmã Stella contou que passou ao lado de um pacote e viu vários gatinhos mortos, esmagados. Ficamos em silêncio revoltante. O que leva uma pessoa a cometer uma maldade dessas? Por que, ao invés de simplesmente descartar incômodos seres, não doa, não leva a alguma instituição que cuida de animais? Ah, sim, é verdade, dá trabalho. Mais fácil jogar no meio da rua, no rio, no mato como se lixo fossem. Quem descarta um bicho descarta qualquer coisa, inclusive gente. Eu acredito nisso. A impiedade construída nos pequenos detalhes cotidianos vai em um crescente até culminar em matar o que dê na veneta.

Aprendi em minha infância o prazer do companheirismo de gatos, cachorros, galinhas, galos, pintinhos, passarinhos… Mantínhamos uma relação diferente da de hoje com os bichos de duas, quatro patas. No interior de São Paulo, Indiana, vivendo uma vida de sítio, me entristeceu quando um cachorro de rua que apareceu lá em casa, muito bravo, foi levado a quilômetros de distância de onde morávamos. Leão foi largado lá. Dias depois ele retornou, todo sujo, e aí ficamos com ele. Leão morreu de morte envelhecida. Choramos. Verdade, esse ato foi uma crueldade, mas éramos, na década de sessenta, mais ignorantes, os bichos eram tratados como seres de segunda, terceira categoria. Ainda bem que evoluímos e aprendemos que somos todos irmãos e fazemos parte de uma vida em cadeia. Em tempos atuais, sobram informações veiculadas em todo tipo de mídia (em meio a tantas porcarias) sobre os cuidados, o respeito que devemos ter com os nossos não semelhantes, igualmente. É crime maltratá-los. Dá multa, até cadeia. Apesar de sufocadas, sem espaço, sem material humano e sem dinheiro, há diversas Ongs que cuidam de animais; elas os aceitam, sejam em que circunstâncias forem. Então, por que descartá-los sem a menor piedade? Como pode ser normal causar dor? Como não dói fazer doer? É como deixar nas calçadas, nos parques públicos, nos terrenos baldios, à beira de córregos, rios, os móveis que não nos servem mais, prática comum e abominável. Que descaso com a vida alheia! Que terrível gerar mal aos outros, semelhantes ou não! Moro no centro de Campinas e vira e mexe tem sofás, cadeiras, estantes largados na estreita rua dividindo espaço com os pedestres. Que se danem, não é mesmo? Varremos para fora o que não nos serve. Viramos as costas e seguimos adiante sem o menor pudor, sem compaixão. Credo!

Essa é a política diária praticada por muitos, lamentavelmente. É a personificação do individualismo, do exercício diário do descarte de coisas, pessoas e bichos. E aí se transforma em uma bola de neve. Começa pequenininha, em ações que nos parecem sem importância até se transformar em discurso, oficial, do tipo “passar a boiada”. Quem é mantido pelo nossos impostos e não vê problemas em desmatar, em matar milhares de seres vivos indefesos sem ter para onde correr, em queimar riquezas e belezas em nome de mais lucro, para poucos, não entendeu a urgência em preservar os meios de vidas. Habitamos o mesmo veículo, a Terra, que nos transporta ao longo da nossa existência, breve, brevíssima. Podemos escolher viver com mais ou menos qualidade. Não podemos considerar normal, nos dias atuais, a lógica da mente colonialista e predatória a derrubar e incinerar florestas; contaminar os rios e oceanos; explorar até a morte os manguezais. É a postura de um estado saqueador. Infelizmente, essa conduta é secular.

Nesse mundo polarizado, é vital nos mirarmos em pessoas ímpares, apesar de todos os seus defeitos e discordâncias que possamos ter em relação a elas, mas que nos deixaram um legado de amor à vida, das mais simples às mais complexas. Para mim, esse é um jeito de manter a minha sanidade, na medida do possível. Há 794 anos, neste mesmo mês, outubro, deixou de existir um homem que amava a natureza. Ele se colocava nem acima, nem abaixo, mas no mesmo nível de tudo o que pulsa neste mundo. Chamava de irmã, a Lua; de irmão, o Sol. O italiano Giovanni di Pietro di Bernardone abdicou da riqueza, da família, para se transformar no Francisco de Assis. Morreu com aproximadamente 45 anos.

Artista: Cesar Fontenele

Para os católicos, um santo. No entanto, um homem universal, amado e respeitado por diferentes religiões e ateus. O frade pregava uma vida em harmonia. Pregava e praticava a simplicidade, o viver com o menos em abundância, aquela que brota em nosso âmago. Ensinou o amor, seja aos passarinhos, aos gatinhos, aos cachorros, aos tamanduás-bandeira, às árvores, às flores, aos peixes, às águas de rios que desembocam nos oceanos… O que hoje muitos chamam de minimalismo, já era praticado por Francisco de Assis séculos atrás. Deveríamos começar a praticar urgentemente essas premissas todas antes que morramos em meio ao fogo ardente da nossa cobiça.

Também assisti, na Netflix, ao documentário de Wim Wenders: “Papa Francisco: Um Homem de Palavra”. A crítica não perdoou o cineasta por não ter produzido um filme crítico ao homem que dirige uma das maiores instituições religiosas, com um passado e presente duvidosos; afeita aos ritos caros, milionários, afeita ao poder. Nada franciscano. Wim Wenders explicou que preferia mostrar o lado bom desse homem do “fim do mundo”, que ele admira. O cineasta alemão disse que muita gente, com ou sem razão, já critica o papa que abdicou do apartamento luxuoso do Vaticano; dos carros imensos; dos cordões e crucifixo de ouro cravejado de brilhantes, rubis, esmeraldas. Óbvio, ele não consegue empobrecer uma instituição milenar construída na opulência. Mas, Francisco, o Papa, optou por seguir uma vida simples como aquele de quem emprestou o nome: o São Francisco. Achei o início do documentário um pouco cansativo. Depois, passei a gostar da narrativa, das histórias, dos alertas sobre a doença que abate o nosso planeta, poluído e doente. Nos esquecemos do mais importante: não somos donos de nada. Somos parte de uma engrenagem. Se descartamos, seremos descartados. Não dá para “passar a boiada” para beneficiar interesses escusos.

O documentário entrelaça a vida de Francisco, o Papa, e de Francisco, o santo, o revolucionário, o primeiro ambientalista, de fato. Das mensagens edificantes, para se pensar e praticar, uma me fez e faz refletir:

“Quanto mais poderoso você é; quanto mais suas ações afetam as pessoas, mais você deve ser humilde, porque, do contrário, seu poder o arruinará e você vai arruinar os outros.”

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