Depois de um intervalo em julho, os recitais de música erudita contemporânea da Cpfl Cultura voltaram com tudo no sábado, 8 de agosto, à noite, com uma apresentação arrebatadora do violoncelista paraibano Raïff Dantas Barreto, 46 anos, e do pianista paulista Rogerio Zaghi, 40 anos, para cerca de 70 pessoas no auditório Umuarama, na sede da Cpfl Cultura.
O recital faz parte do módulo “Os Mundos de Mário de Andrade e a Contemporaneidde”, com curadoria da maestrina Simone Menezes, ex-regente da Sinfônica da Unicamp, e coordenação do jornalista João Marcos Coelho, crítico de Música Erudita do jornal “O Estado de São Paulo” e da Revista Concerto.
De acordo com o texto do programa, “Mário de Andrade buscava descobrir qual era o som que esta terra produzia. Seu ideal era criar uma escrita musical que fosse um retrato sonoro do Brasil. Uma música nacionalista forte e autoral, que incorporasse elementos nascidos espontaneamente na terra (folclore, música popular, tradições orais) com as técnicas da música dita universal. Seus pensamentos influenciaram contemporâneos e ecoam diretamente na produção de compositores de nossos dias. Esta série aponta ecos deste pensamento em compositores que vão desde Villa-Lobos e Francisco Mignone até contemporâneos como Villani-Côrtes e Beetholven Cunha”.
Na abertura do recital, Simone Menezes basicamente repetiu outro texto do programa, segundo o qual nesta apresentação “podemos acompanhar três gerações de compositores influenciados pelo pensamento de Mário de Andrade. Na primeira geração, temos testemunhas oculares como Francisco Mignone e Heitor Villa-Lobos, que começam a pensar a música clássica não mais como música clássica em si, mas como a música clássica brasileira. Este legado musical, entretanto, vai sendo passado adiante, e temos então uma segunda geração com compositores como Camargo Guarnieri e César Guerra-Peixe, que conservam esta maneira de pensar. Finalmente, chegamos ao mundo de hoje, a terceira geração, e podemos encontrar compositores como Edmundo Villani-Côrtes e João Linhares, que ainda são fortemente influenciados pela forma de pensar a música de Mário de Andrade”.
Enfim, depois deste longo preâmbulo, os dois instrumentistas entraram e Raiff já avisou que a ordem que tínhamos no programa não seria seguida e algumas peças seriam substituídas. E com Raïff sentado à frente do piano e à direita do pianista (o que dificultava o contato visual), começaram exatamente pela última peça do programa, a “Pequena Suíte”, de Heitor Villa-Lobos (1887-1959), em seis movimentos, que alternam estados de espírito –o melancólico Romancette, o primaveril Legendária, o soturno Harmonias Soltas, o quase barroco e alegre Fugato (all’antica), o lírico Melodia e o quase dançante Gavotte-Scherzo.
Em seguida, a segunda obra inicialmente prevista no programa, a curta “Três Peças”, de César Guerra-Peixe (1914-1993), originalmente composta para viola e piano. Raiff explicou que Guerra-Peixe viveu em Pernambuco e compôs muita música com temas nordestinos, como essas peças. Na entrevista que fiz com Raïff quinta-feira passada, ele comentou que a segunda das três peças é praticamente um “aboio”. A terceira é uma torrente, de grande força, intensidade e velocidade.
Na sequência, em vez de “O Canto do Cisne Negro”, de Villa-Lobos, o duo executou “Modinha”, de Francisco Mignone (1897-1986), uma peça romântica de rara beleza, que ambos executaram com grande expressividade.
A quarta peça foi “Ponteio e Dança”, de Camargo Guarnieri (1907-1993), que Raiff contou que se chamava Mozart Camargo Guarnieri, nascido em Tietê, cidade próxima a Sorocaba, e que foi adotado artisticamente por Mario de Andrade. Sobre o primeiro nome do compositor, lembrou que não é um caso único por aqui: existe um ótimo compositor piauiense chamado Beetholven Cunha. Comentou que isso talvez se deva à vontade dos pais de terem filhos grandes compositores, o que no caso de ambos funcionou muito bem.
“Ponteio e Dança” tem dois movimentos, cujos nomes revelam exatamente o que são: Tristonho e Festivo.
Raïff anunciou que a quinta e a sexta peças do programa seriam do grande Edmundo Villani-Côrtes (1930), “este jovem compositor de 85 anos, o maior compositor vivo brasileiro”. E avisou que a primeira delas, “Luz”, originalmente composta para violino e piano, era uma jóia. E é belíssima mesmo, ainda mais bonita no violoncelo, segundo Raïff (com o que eu devo concordar após ouvi-la com violino e piano) e a interpretação do duo fez com que lágrimas rolassem pelo meu rosto. A outra, “Andantino”, manteve o mesmo estado de emoção e deslumbramento da anterior.
A sétima e a oitava peças foram para violoncelo solo: “Aquela Modinha Que o Villa Não Escreveu” (prevista no programa) e “Macunaíma (A Valsa Sem Caráter)” (no lugar de “Mistério”), ambas de Francisco Mignone, originalmente compostas para fagote solo e gravadas por Noel Devos em 1982 no LP “16 Valsas Para Fagote Solo” e depois reeditado em CD pela Funarte. Raïff transcreveu para cello e gravou em CD em 2010. Apaixonado pelas peças desde que as ouviu pela primeira vez, há mais de 20 anos, ele explica sua opção no encarte do CD: “Por que deveria transcrever aquelas músicas para violoncelo se ele, sempre lembrado pelos compositores brasileiros, nos oferece uma vasta relação de obras maravilhosas para serem executas? Simplesmente porque são lindas no fagote, no cello ou em qualquer instrumento, desde que superadas as dificuldades técnicas e musicais”.
Após a execução dessas peças, Raïff saiu e Rogerio entrou para tocar “Sonatina Para Piano”, do compositor catarinense Edino Krieger (1928- ). Antes, destacou que Edino mescla um pouco do nacionalismo com referências da música erudita internacional, o que pudemos ouvir nessa obra, que tem um primeiro movimento Moderato intenso, belo e emocionante e um Allegro breve, arrojado e cheio de cores, com um final apoteótico.
Eu já conhecia o Raïff, que solou no início do mês passado com a Sinfônica de Campinas no Teatro Castro Mendes, primeiro violoncelo da Sinfônica do Teatro Municipal de São Paulo, onde toca há 18 anos, um dos mais renomados cellistas brasileiros. Mas não conhecia o pianista Rogério Zaghi, atual coordenador de programas educacionais da Osesp. Foi uma grata surpresa descobrir que ele é um pianista excelente, dos melhores que já vi fazendo música de câmara. Fraseado elegante, limpíssimo e elegante, dinâmicas impecáveis, grande musicalidade e apuro técnico. Isso tudo fui percebendo ao longo da apresentação e mais ainda na Sonatina. Depois, conversando com o Rogério, fiquei sabendo que ele trabalhou anos como correpetidor (pianista que acompanha cantores líricos e corais) e, disse isso a ele, creio que isso explique toda essa delicadeza e refinamento, que me lembrou muito aquele que pra mim é o melhor pianista deste gênero no Brasil, Ricardo Ballestero.
Na sequência, Rogério e Raïff tocaram mais duas peças do Villa: “Capricho” e a famosíssima Ária-Cantilena da Bachianas Brasileiras Nº 5, originalmente para soprano e uma orquestra de oito violoncelos.
Imagino que Raïff já tenha tocado essa peça centenas de vezes e, se é verdade que a prática leva à perfeição, a interpretação dele foi realmente magnífica, comovente, de uma beleza extrema.
Pra encerrar, “Côco”, do compositor paraibano João Linhares, que transita bem entre o erudito e o popular, uma peça de extrema dificuldade, feérica e que só dá alguns poucos compassos de pausa para o cellista respirar e virar a página. Raïff já gravou esta peça com o pianista Paulo Gazzaneo e a gravação pode ser ouvida no Youtube.
Foi um fecho de ouro para um recital de 1h20 que mostrou toda a riqueza da música brasileira produzida ao longo do século passado e início deste.
Após a apresentação, os músicos ficaram ainda por quase uma hora conversando e tirando fotos com o público. Raïff estava com toda a família (esposa e dois filhos), gosta muito de conversar e brincar com todo mundo e aproveitou para falar um pouco de italiano –ele estudou por três anos no Conservatório de Parma– com o mestre de cerimônias da CPFL Cultura, Giancarlo Arcangeli.
A noite tão agradável terminou com abraços de despedidas na calçada em frente à CPFL Cultura e uma sensação de grande contentamento para músicos e público presente.
P.S.: Fiz uma entrevista com o Raïff Dantas Barreto dois dias antes do recital para o Fractal, da Rádio Educativa de Campinas FM (101,9 MHz), que pode ser ouvida neste link: https://soundcloud.com/daniloleitefernandes/entrevista-com-raiff-dantas-barreto
Fotos: Danilo Leite Fernandes
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