Cronicando

Quem vê quem

por Maria Angelica
Publicado em 24 de outubro de 2020

Detenho-me. São lindas! Um espaço exíguo aprisiona bichos nascidos para voar; ‘malemá’ voam. A suindara, a coruja-orelhuda, a murucututu e, em outro cercado, a buraqueira. Gosto dos seus olhos arregalados, quase imóveis. E da rotação que fazem com a cabeça, como se estivesse desconectada do restante do corpo. Sei, é pura ilusão, mas me agrada pensar desse jeito. Elas encaram a gente. Nem piscam. A rajada de vento garatuja caminhos e mistura os tons brancos, marrons, cinzas de suas penas. Elas balançam no fio de seus poleiros. É um balé triste. Sempre que vejo aves em gaiolas, não importa o tamanho do cativeiro, me sobrevém a sensação de quem vê quem na prisão.

A brevidade do passeio em círculo no que restou da Mata Atlântica nos proporciona sentidos a nosso respeito. Imagine você gravitando na espiral da Via Láctea, uma das trilhões de galáxias do Universo observável. De algum ponto a Terra vista é um grão, poeirinha, ou nem isso. Mas, para nós, nosso planeta é um quintal complexo. Nós que aqui estamos enxergamos, sentimos, nomeamos esse quintal como imenso, porém ele é tão pequeno perante toda essa cadeia infinita de vidas visíveis e invisíveis, que existem, não existem mais, rastros no infinito.

Retomo a caminhada na trilha asfaltada do Bosque dos Jequitibás, centro de Campinas. Antes de mirar os olhos das corujas, travei um monólogo com os papagaios, diferentes espécies. Para não me deixar partir decepcionada, um deles escalou a grade, se contorceu e se segurou na tela pelo bico. Fez uma graça ao me fixar com seus olhinhos. Na curva que antecede a subida, dou de cara com o pavão; se exibindo para as fotos? Para suas várias companheiras saracoteando perante o leque de olhos nas plumas multicoloridas? Sem atrair tantos olhares, adiante, o carcará em silêncio e a seriema em pose iogue miram através do aramado o longínquo céu. Eu me distraio e em segundos presto atenção aos assovios de macacos isolados no lago onde está fincada a redonda ilha com uma casinha e correntes que delimitam os movimentos. O sol a pino e os primatas malabaristas balançando nos elos das correntes, se esticando para pegar alimentos que boiam na água. Imagino que do olhar dos macacos sua casa é enorme e, aos seus olhos, desmedido é o firmamento separado pelo lago verde. Para mim, uma minúscula prisão em meio a um diminuto cosmo H2O os cerceando de pular de árvore em árvore, livres. Sei, tem os predadores, mas preferível correr, se esconder, morrer em liberdade. Penso naqueles que possam nos observar observando esses múltiplos seres e lugares artificiais construídos pelos humanos nos assistindo em nossa insignificante prisão orbitando o sol.

Não sei se vocês se lembram de um desenho animado (um dos meus preferidos) chamado “Horton e o Mundo dos Quem”, de 2008. Não vou entrar em detalhes, mas, basicamente, conta a história de um meigo elefante. Horton tenta salvar o planeta dos “Quem” a pulsar em um grão de pó. Os habitantes da floresta onde mora Horton descreem da possibilidade de que haja vida nesse grãozinho. Por sua vez, os Quem sequer imaginam existência fora dali, de seu lar perfeito e feliz e muito menos que estão à beira da extinção. Quaisquer semelhanças com a maioria de nós, com nossos comportamentos egoístas, egocêntricos não é mera coincidência.

Parto do porto que sou eu. Atracada no cais a perder de vista, já me imaginei imprescindível, sabe a última bolacha do pacote? Então, não sou, não somos. Estamos, digamos, encarcerados no presente e, no entanto, vivemos como se eternos fôssemos, como se, na cadeia alimentar do mais forte, realmente não devêssemos satisfação alguma a ninguém, seja quantas patas e braços tenha. A nossa presunção não nos deixa enxergar a nossa nulidade no tempo, relativo. Basta um giro no bosque.

Ao chegar ao fim do meu exercício matinal, eu me divirto prestando atenção às propagandas nos bancos antigos do parque. Lojas, bares, restaurantes, indústrias. A maior parte é pretérito e só faz rir quem já viveu épocas passadas. Foi num desses ciclos que parei, descansei antes de retornar à minha casa, perdida em um período que passou em um piscar de olhos. Prova de como o tempo é implacável. Nas letras apagadas pelos anos, podemos ler: “Timoteo Barreiro – máquinas de escrever, somar e calcular.”  Sigo minha trajetória rindo para não chorar.

Fotos: Maria Angélica Pizzolatto

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