“Uma classe social não é um dado fixo, definido apenas pelas determinações econômicas, mas um sujeito social, político, moral e cultural que age, se constitui, interpreta a si mesmo e se transforma por meio da luta de classes.” – Marilena Chauí
Dirigido e roteirizado por Anna Muylaert, Que horas ela volta? (2015), é o filme certo na hora certa. São tantas as problematizações propostas por Muylaert (luta de classes, trabalho doméstico e suas formas de quase “escravidão”, relações de afetos, empoderamento social e feminino) que fica difícil elencar apenas um tema para discorrer. Manteremos aqui duas questões que, na condução da narrativa proposta pela diretora, parecem mais urgentes nessa equação: a luta de classes e o empoderamento feminino.
Sem nenhum proselitismo discursivo relacionado ao assunto de luta de classes e diferenças sociais entre patrões e empregados, Anna consegue um retrato extremamente arguto dessa realidade. São nos pequenos detalhes, nos pequenos gestos e palavras da doméstica Val (vivida de forma quase contida, simples e terna pela extraordinária Regina Casé, corpo e alma do filme) que nos é mostrado o abismo dessas relações, por mais que a classe dominante insista em um discurso igualitário propagando que essas trabalhadoras são “praticamente da família”. Esse discurso é repetido algumas vezes durante o filme, com algumas variações de contexto, mas que sempre nos deixa envergonhados por sermos cúmplice de uma situação tão vexatória. Muylaert consegue captar cada variação dessa relação com resquícios de um Brasil Colonial, onde quem paga manda e quem recebe, obedece e agradece, mantendo assim a ordem dentro de uma hierarquia de poderes pré-estabelecidos. Anna consegue tudo isso sem resvalar para um discurso panfletário de ordem ideológica, assim como ocorreu com Casa Grande (2014, de Fellipe Barbosa) que, ao falar sobre uma classe média alta que começa a perder seus privilégios, insiste em uma discussão sobre cotas em universidades públicas de uma forma quase constrangedora, atrapalhando a fluência da narrativa.
“De fato, conservando as marcas da sociedade colonial escravista, a sociedade brasileira é marcada pelo predomínio do espaço privado sobre o público e, tendo o centro na hierarquia familiar, é fortemente hierarquizada em todos os seus aspectos: nela, as relações sociais e intersubjetivas são sempre realizadas como relação entre um superior, que manda, e um inferior, que obedece. As diferenças e assimetrias são sempre transformadas em desigualdades que reforçam a relação mando-obediência, e as desigualdades são naturalizadas. As relações entre os que se julgam iguais são de “parentesco”, isto é, de cumplicidade; e, entre aqueles que são vistos como desiguais, o relacionamento toma a forma do favor, da clientela, da tutela ou da cooptação, e, quando a desigualdade é muito marcada, assume a forma da opressão”. (Chauí, Marilena in http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Uma-nova-classe-trabalhadora/4/28062)
A opressão nessas relações vem de forma velada, utilizando-se desse simulacro do “faz parte da família”, repleto de preconceitos internalizados e repetidos à exaustão. A diretora e também roteirista é hábil em quebrar qualquer didatismo que a apresentação dessa situação possa conter e opta por um humor agridoce e ingênuo da protagonista que, mesmo estando nessa situação de subordinação, sabe o que representa cada escolha que é feita no seu dia-a-dia. Muylaert constrói uma personagem que não é apenas uma empregada doméstica em uma casa de uma família classe média é, antes de tudo, um amalgama de todas as mulheres com poucas condições financeiras, que precisam desses empregos (sejam elas empregadas domésticas, atendentes, lavadeiras, cozinheiras, etc). A Val de Muylaert e Regina Casé são essas mulheres fortes e batalhadoras que nunca perdem o humor e a capacidade de se reinventar, mesmo quando a vida insiste em lhes dar alguns tropeços. É uma personagem universal, imbuída de uma ternura que a transforma na grande heroína do cinema brasileira contemporâneo. Assim como uma Macabéia moderna Val não tem sonhos, nem objetivos, “(…) ela somente vive, inspirando e expirando, inspirando e expirando…o seu viver é ralo (Clarice Lispector, A hora da estrela, 1995)”, em uma caminhada que não se percebe existindo dentro de sua especificidade humana, reconhece-se apenas para servir aquela família que, em determinado momento, também é um pouco sua família (mesmo que não seja tratada como uma igual), pois são eles a quem seu afeto é direcionado, afeto esse que não pode ser compartilhado com a filha que vive no Nordeste, mas é dado de forma ilimitada ao filho do casal de patrões.
Que horas ela volta? ainda faz-nos pensar sobre um assunto muito pertinente ao cinema brasileiro atual: o lugar que as mulheres ocupam nessa industria do fazer cinematográfico. Mesmo que o protagonismo seja das mulheres (Val, sua filha e a patroa) e os homens (o patrão e o filho) sejam sempre omissos ou distantes, fica difícil dizer que Que horas seja um filme “feminino” ou “feminista”. O que podemos dizer é que se trata de um caso bem atípico dentro da cinematografia brasileira: é protagonizado por mulheres e feito por mulheres (direção, roteiro, montagem, fotografia) e que não resvala em caricaturas óbvias do universo feminino.
Esse empoderamente feminino dentro de uma indústria seguramente dominada por homens causa incômodo, tanto que o episódio acontecido em Recife é de conhecimento geral. A presença de Anna em um debate na Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), ocasionou interrupções constantes e vexatórias dos diretores pernambucanos Lírio Ferreira e Cláudio Assis, profundamente misóginos, sexistas, gordofóbicos e tacanhos em suas provocações à diretora e ao filme. Nas palavras de Anna, “mais importante do que discutir o sábado passado é abrir o debate sobre o aprendizado da sociedade em aceitar situações onde o protagonismo é das mulheres e a coadjuvância dos homens. Afinal, estamos todos em obras. Um dos temas do meu filme que discutíamos aquele dia é justamente as regras sociais invisíveis que nos regem muitas vezes sem nossa própria consciência” e continua dizendo que o fato de verem “uma mulher em evidência, precisaram atrapalhar o momento”.
Percebe-se, portanto que, dentro e/ou fora da tela, Que horas ela volta? suscita amplos debates e, mesmo que muitas situações acabam resvalando para um humor quase involuntário da protagonista, Anna é certeira naquilo que pretende ser mostrado, nunca deixando que a(s) reflexão(ões) que sua obra propõe resvale ao piegas ou ao engajamento político meramente discursivo e/ou redundante.
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