Cronicando

Por que somos tão passivos?

por Maria Angelica
Publicado em 26 de novembro de 2020

 Foto: Kevin Carter

África. Sudão. 1993. Pele e osso, um bebê sucumbia à fome. À espreita, um abutre. A foto que impactou o mundo é do fotojornalista sul-africano, Kevin Carter. Apesar da iminente morte, o menino não foi devorado pelo abutre. Com subnutrição grave, Kong Nyong, a criança da foto, como prova uma pulseira branca, estava sob os cuidados do programa das Nações Unidas de combate à fome. Kong morreu em 2007 de “febres”, como contou o pai ao diário espanhol “El Mundo”, em 2011. Em um campo de trabalho, a questão que se levanta é se um fotógrafo, um cinegrafista, um jornalista devem interferir na realidade ou apenas retratá-la. O fotógrafo sul-africano decidiu fotografar e revelar ao mundo a crueldade do abandono de inocentes em meio à guerra civil, à seca, à miséria absoluta.

Foto: Redes Sociais

Brasil. Rio Grande do Sul. Porto Alegre. 2020. João Alberto Silveira Freitas, autônomo, 40 anos, negro, foi espancado covardemente por dois seguranças do supermercado Carrefour. Várias testemunhas filmaram a cena, outra crônica de uma morte anunciada. Nada, nada justifica tamanha brutalidade. Essa não é a primeira morte que um cidadão negro sofre em consequência do racismo estrutural no Brasil, quando isso faz parte do cotidiano, incorporado de tal forma que ganha o status de normalidade nas relações. Foram 300 anos de escravidão no nosso país. Nas Américas, o último a abolir, pelo menos de forma oficial, a escravidão. Foi em 1888. Por mais que rejeitemos, está incrustada em nossa mente, em nossa percepção, a de que as pessoas negras são inferiores. A miséria, a marginalização, a discriminação, o preconceito têm muitas cores, mas a negra predomina. O Atlas da Violência 2020 mostra que, de 2008 a 2018, a taxa de homicídios de negros cresceu 11,5%. Enquanto isso, a de não negros (brancos, amarelos e indígenas) caiu 12%. Dos brasileiros assassinados nesse período, 75,9% eram negros. Continuamos a considerar, de maneira recorrente e criminosa, os negros como uma sub-raça. Os novos feitores não usam chicotes, mas sim armas, artes marciais, indiferença, injustiça na distribuição de renda, de educação, saúde, moradia digna, respeito em todos os lugares e situações. Aliás, respeito é o cartão de visita de um povo que se pretende evoluído, desenvolvido.

E o que tem a ver a foto de Kevin Carter e as imagens gravadas do espancamento e assassinato de João Alberto? A pergunta que me faço é por que somos tão passivos diante de uma agressão dessas? A covardia que nos aprisiona, nos amedronta é a resposta para tanta desigualdade, corrupção, violência dos nossos Brasis: em um deles, 56,1% são de negros ou pardos. E a desigualdade social condena à extrema pobreza 70% dessa população. Carregamos o ranço de olhar para essas pessoas como sendo perigosas e inimigas. Isso explicaria, em parte, a passividade diante da barbárie sofrida por João Alberto. É uma questão de matemática: no local várias testemunhas (15, segundo a polícia) assistiam as agressões desferidas por dois seguranças. E nada foi feito. O uniforme, os nomes, a “valentia”, os cargos nos paralisam. Ah, e tem também, é fato, o desejo dos likes dos flagrantes que filmamos de situações diversas, mesmo que até a morte. Em tempos de redes sociais, mais do que nunca esse comportamento se evidência. Sim, somos covardes. Sim, somos valentões somente escondidos atrás dos celulares, dos cliques, dos computadores, em bando. “Cuidamos” tanto da vida alheia, mas somos ovelhas vendo nossos semelhantes levados ao matadouro.

Kevin Carter

Vinte e sete anos atrás, em uma zona de conflitos, o fotojornalista sul-africano Kevin Carter acompanhava uma missão da ONU que distribuía alimentos na aldeia de Ayod, do então Sudão, hoje Sudão do Sul. Foram poucos minutos naquele lugar. As mulheres saíram em busca da comida distribuída. As crianças, como Kong Nyong, sem forças, aguardavam ter o que comer. Fazer a foto do bebê, assim como foram tiradas outras tantas, é um meio de revelar ao mundo que a violência, nas suas mais variadas personificações, abate milhares de seres humanos que fogem da guerra, da miséria, da fome, das perseguições. Este ano, a Unicef, Fundo de Emergência Internacional das Nações Unidas para a Infância, calcula em mais de 270 mil o número de crianças desnutridas no Sudão do Sul. Por causa da foto, Kevin Carter chegou a ser chamado de “abutre”. Devastado pela repercussão, peso da imagem, da dor insuportável do que vivenciou, do vazio, Kevin se suicidou, aos 33 anos, em 1994, meses depois de ganhar o Prêmio Pulitzer pela foto.

João Alberto Silveira Freitas

No Carrefour, supermercado de uma rede francesa, na véspera do Dia Nacional da Consciência Negra, uma mulher e seu marido fizeram uma compra de pouco mais de 60 reais. Milena Borges Alves voltou para casa sozinha. O marido, João Alberto, acabou em um caixão. As testemunhas dessa selvageria? Bem, elas compartilharam suas imagens e retornaram aos seus afazeres cotidianos, às suas famílias, na segurança de seus lares, com a cabeça voltada para baixo.

 

Foto de capa: Artem Ivanchencko

Dica: “Repórteres de Guerra”, título em português de “The Bang Bang Club”, de 2010, é um filme baseado na história real de Kevin Carter e de outros três fotojornalistas que formaram o grupo Bang Bang Club durante a transição do regime de apartheid, na África do Sul, na década de 90. É bem interessante para conhecer a vida desses profissionais que vivem no fio da navalha dos conflitos sociais e da ética.

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