Cronicando

Pequenas delicadezas em tempos de Coronavírus

por Maria Angelica
Publicado em 16 de abril de 2020

Guilherme, 4 anos. Vitor, 5 anos. Eles não se conhecem, 4 quilômetros os separam, mas os dois fazem a diferença em tempos difíceis de isolamento social. Para quem estava acostumada a sair todos os dias de casa, caminhar, fazer hidroginástica, fazer cursos, interagir com várias pessoas, de repente os 65 metros quadrados do apartamento ficaram sufocantes. E olha que não posso reclamar. A maioria dos brasileiros não tem esse privilégio de um espaço enorme desse só pra si. É verdade, fico envergonhada ao reclamar. Mas, ainda assim, está complicado. Passo horas, como grande parte da população, conjugando o afastamento por causa da pandemia da COVID-19. Moro no centro de Campinas. Como fazem falta as conversas no café ao lado do meu prédio; olhar ao redor durante a caminhada e, acredite se quiser, ver o vai e vem das pessoas apressadas, dos carros, motos, ônibus e as discussões de trânsito, minha mãe!!!

No começo eu até dava minhas escapadas, batia pernas por aí. Quando os casos da doença cresceram e cada vez mais eu ouvia e via relatos dos perigos, das mortes, diminuí as saídas e me isolei de vez. Como foi impactante a imagem de caminhões do exército da Itália levando, em procissão, os mortos do Novo Coronavírus. Pensei: “Se não sossegar meu facho a coisa pode ficar feia também por aqui”. É o que afirmam os especialistas. Não é uma brincadeira, é sério. Alguns dizem que vai durar alguns meses até podermos retomar a normalidade de nossas vidas, mas nada será como antes. Grandes concentrações de pessoas? Enormes espetáculos? Bares e restaurantes abarrotados? Nem pensar!

E o aonde entram Guilherme e Vitor? Bem, eles aparecem como pequenas delicadezas em tempo de relações distantes, frias, da falta dos beijos, dos abraços, dos contatos próximos. Um dia antes de me isolar de forma rigorosa, visitei minha irmã, avó do Gui, meu sobrinho-neto. Conversamos por horas. Guilherme pontuava o diálogo entre nós duas com suas intervenções, afinal ele também está em isolamento, longe dos amiguinhos da escolinha. Meu magrinho, só não está isolado desse tema tão recorrente: “Tia, olha só – ele me mostrou um desenho -, essa aqui é a curva da Covid”, falava isso enquanto ia traçando com um lápis preto a curva crescente da doença no país. Ri um riso entristecido. O Guilherme fará parte de uma geração impactada por esse inimigo invisível, mais letal que muitas guerras e outros vírus a rondar nossa existência. Nada será como antes, repito em meus pensamentos. Relembro quando o levava para passear no parquinho, das corridas entre os brinquedos, das balanças, escorregadores e, uma queda seguida de um choro logo só interrompido pela descoberta de nova diversão. Lamento, com meus botões, a prisão em que esse menininho de 4 anos se encontra, como tantas outras crianças, mesmo aquelas vivendo ao lado de uma grande família sob um minúsculo teto. São os à margem de tudo. Se antes nossos pequeninos pouco interagiam, hoje se relacionam muito menos com os seus iguais em tamanho e idade.

Quando, na casa de minha irmã, dei a largada da minha despedida, Guilherme logo me pediu: “Fica só mais um pouquinho, tenho tarefas pra você, tia.” Então, aguardei e a cada tentativa de ir embora ele repetia riscando no ar com o indicador e o polegar seu pedido: “Só mais um pouquinho”. Entre uma despedida e outra, Guilherme me trazia tarefas em folhas de papel branco. Eram desenhos para que eu completasse, pintasse, copiasse. “Assim você não fica triste e nem com medo da Covid”. Isso mesmo, a Covid-19 já faz parte do vocabulário de Guilherme. Eu não o abracei, não o beijei como queria, voltei para casa emocionada com a preocupação dele e saudosa daqueles momentos em que nos abraçávamos, nos beijávamos e ríamos. Ao chegar em casa, segurando o maço de 12 páginas de tarefas, subi pelo elevador. Eram dez horas da noite. Entrei em minha solitária “cela” com outros dois companheiros de longa jornada: Pikachu e Gattino, meus velhos gatos. Olhei aqueles desenhos e senti uma ternura que me acolheu, um amor sem igual. Uma lição por dia a ser preenchida de diferentes cores. Quando tudo isso acabar, imaginei, preciso entregar ao Guilherme, meu amado mestrinho.

Na mesma noite, felizmente, escuto novos sinais de vida. Duas crianças, Milena, 2 anos, e o Vitor, o menininho que vocês vão conhecer agora. Ouvir essas vozes infantis em meio ao silêncio solitário é um conforto. Fui dormir e no dia seguinte ao abrir a porta vi um bilhetinho em um papel amarelo de recados. Vitor o enviou para meus dois gatos com a mensagem: “Amo vocês, beijos, Vitor”. Atrás do papelzinho, ele desenhou o sol, nuvens e uma casinha com os dois bichanos lá dentro. Bem, Pikachu e o Gattino não poderiam cometer a indelicadeza de não responder, afinal não foi essa a educação que dei a eles (risos). Como, infelizmente, ainda não sabem escrever, faria por eles. De um pequeno caderno retirei a folha para escrever o agradecimento, e não é que tremi, que fiquei sem palavras diante de tamanha gentileza?! Então, em nome de Pikachu e Gattino, colei vários adesivos de balões, sol, gatinhos, notas musicais e empurrei por debaixo da porta do apartamento de Vitor.


No outro dia, abri depressa meu apartamento para que o vento passasse por minha morada e trouxesse um sopro de vida. Eu estava ansiosa para ver se havia uma nova cartinha. Nada. Fiquei desapontada, mas por pouco tempo. À noite, minha porta fez um barulho e corri; lá estava mais uma imensa delicadeza através de um novo desenho e a assinatura de Vitor. Como fiz com o outro, colei na porta da minha geladeira. Depois, redigi a resposta agradecida acompanhada dos vários decalques coloridos. Em um domingo à tarde, minha porta estava aberta quando saíram do elevador o Vitor, Milena e seus pais. Mantivemos a distância de segurança e eu pensei: “Bem que podia dar um abraço apertado nele e na irmãzinha”, mas foi só um rápido pensamento. Os dois queriam mesmo era ver os gatinhos. Assustados com o barulho de gente, cada um foi para um lado. Meu gato de rua, Gattino, o mais medroso, se enfiou debaixo da colcha da cama. Pikachu, uma persa peluda, deu às caras e, também, manteve a distância de seus fãs. Tempos atrás, Vitor e Milena entrariam e passariam as mãos na Pikachu. É, são os novos tempos, tempo da dureza do Novo Coronavírus, mas que trouxe descobertas maravilhosas como essas. Vitor quis saber se eu estava sozinha. Respondi que sim, mas, claro, com meus dois bichinhos. Segurando as duas mãozinhas, o garotinho ficou a me olhar com compaixão. Sua mãe ofereceu ajuda, “caso eu precisasse, era só chamar”. Antes de terminar o dia, debaixo de minha porta peguei o terceiro bilhetinho. Desta vez era endereçado a mim. O sol, nuvens, eu do lado de fora e flores no jardim ao lado de uma casinha, sobre ela a assinatura de Vitor. Não poderia ser um presente mais singelo. E o retrato de um futuro que sonho para mim, e para todos, em breve viver.

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