Blog do Vinho

Os vinhos antigos e os tempos de fraude

por Suzamara Santos
Publicado em 22 de março de 2017

Sour Grapes, Rudy Kurniawan, vinho, NetflixUau! Que entrada de Outono mais linda… Céu azul, vento fresco, temperatura amena. A estação chegou com muita tipicidade, para usar um termo próximo à enofilia. E tenho certeza que você já está pensando na garrafa que vai abrir logo mais. Eu também. Teremos muitas oportunidades curtir Outono & vinho nesta adega, pois as folhas das árvores mal começaram a cair. Antes, vou pegar carona no quiproquó da fraude carne que está varrendo o País e falar de um assunto que há muito me fascina: as fraudes no mundo dos vinhos antigos. Refiro-me aos golpes milionários que macularam o volátil mercado de rótulos raros, mais notadamente a partir da década de 80, ou seja, ontem mesmo.

Um dos nomes que se destacam nesta conversa é Rudy Kurniawan, um tipo meio nerd, cujos “feitos” são contados em minúcias no ótimo documentário Sour Grapes, disponível na Netflix. Rudy começou a chamar a atenção de enófilos e colecionadores de vinhos no começo dos anos 2000. Jovem, conhecedor de grandes vinhos, degustador singular e com muita, muita grana para torrar, logo se misturou à nata de bons vivants que tinham como hobby “enxugar” garrafas preciosas em jantares extravagantes. Rudy rapidamente encantou o exclusivo “clube da fortuna” com suas contribuições generosas e uma inesgotável disposição para compartilhar joias de sua adega.

Sabia-se que ele era natural da Indonésia, mas a origem de sua fortuna era uma incógnita para todos que desfrutaram de sua companhia. A versão mais recorrente, não confirmada, é que a sua família era dona de uma distribuidora da cerveja Heineken que atuava em toda a China e que Rudy recebia uma mesada de milhões de dólares para queimar a bel prazer. Não demorou muito para que esse exótico amante de safras “impossíveis” se interessasse pelos leilões de vinhos que começavam a mexer com a rotina de investimentos nos Estados Unidos e na Inglaterra. Ele se aproximou da Acker Merral & Condit, a loja de vinhos mais antiga de Manhattan que viria a se desdobrar em casa de leilões, sob o comando de um tal de John Kapon. Começava aí algo espantoso.

Vinhos mitológicas, que muitos acharam que não existiam mais, passaram a ser oferecidos e arrematados por fortunas cada vez mais arrojadas. Para qualquer pessoa apaixonada pela bebida, os nomes que desfilam no documentário são de emocionar. Château La Fleur 1961, Romanée-Conti 1922, Petrus 1929, Roumier 1969, Clos Saint-Denis 1945, Côte Rôtie La Mouline 1985, Clos de La Roche de várias safras e por aí vai. Pelo ímpeto com que tais tesouros eram disputados, vê-se que para um colecionador obcecado com a possibilidade de ter um item exclusivo na adega fazia com que cuidados primários de todo negociante minimamente experiente fossem sumariamente desprezados.

Assim, garrafas como as Clos Saint-Denis de 1945 / 1949 / 1966 / 1971 podiam encontrar abrigo fácil em prestigiadas adegas particulares, ainda que o vinho em questão só passasse a ser produzido em 1982. Ousadia tosca do falsificador, mas suficiente para iludir magnatas. Barbaridades como essas ocorreram aos tonéis nesse período. E, era de se esperar, acabaram intrigando os próprios criadores dos vinhos que ilustravam os oníricos catálogos de leilões. Um deles, Laurent Ponsot, produtor do Clos de La Roche, Borgonha, França, desempenhou importante papel para desmascarar o esquema Rudy.

Domaine Ponsot, Clos de La RocheChamado de “Sherlock Holmes do vinho”, Ponsot partiu em defesa de seu produto quando viu falsificações grosseiras do prestigiado Clos de La Roche protagonizar leilões antológicos em NY. Uma garrafa de 1929 era anunciada em catálogo, sendo que a Domaine Ponsot só começou a engarrafar o vinho em 1934. Ou seja, entre os organizadores desses concorridos eventos não havia uma criatura disposta a checar informações básicas de autenticidade.

Assim, magnatas como o experiente Bill Koch tivera o “privilégio” de reunir em sua adega, então composta por 43 mil grandes vinhos, uma espécie de “galeria dos trapaceiros”, como ele mesmo apresenta os cinco Lafite gravados com as iniciais Th. J., referência a Thomas Jefferson, terceiro presidente dos Estados Unidos, e um dos primeiros entusiastas do vinho da história americana. Só essa distinção fazia a peça ter seu valor multiplicado. Uma das garrafas (cerca de U$ 100 mil dólares), apontava o ano de 1737 para um Château Rothschild.

Pasme, nessa data tal vinho sequer existia. Para um homem como Koch, vaidoso de seu gosto pessoal e disposição para obter coleções caras, a negligência era impensável. Arte impressionista, espadas de Samurai, moedas de prata da Grécia, esculturas, antiguidades e, claro, a incrível adega são alguns dos lendários acervos que se espalham por seus nababescos salões. Por incrível que pareça, ele era freguês de falsários, não apenas de Rudy.

Koch, assim como Laurent Ponsot, foi outro a dar importante contribuição na comprovação das fraudes, colocando em campo uma equipe especializada de advogados e investigadores. Aos poucos, as manhas dos fraudadores começaram a ser reveladas. Olhando daqui, parece não ser necessário contar com sagazes detetives para desconfiar do uso de cola Elmer, lançada nos anos 70, numa garrafa de 1858, tão amadora é a artimanha. Mas para que todo esse lodaçal viesse à tona, foi necessário reunir peritos em rótulos, rolhas, cápsulas, vidro soprados, enfim, um time com habilidades incomuns, mesmo porque o trabalho consiste não só em demonstrar que uma garrafa é falsa, como também achar o responsável pela falsificação.

Embora o negócio do vinho dependa de certificações de autenticidade e procedência, rastrear a origem de um lote muitas vezes significava penetrar num emaranhado de agentes, colecionadores, negociantes, compradores e contadores de histórias. Muitos nomes eram mantidos em sigilo, ouvia-se falar de “ninhos de garrafas” emparedadas em casas antigas desde os anos de guerra, vez por outra algum proprietário misterioso resolvia colocar à venda o acervo herdado por acaso de um parente distante… Eram narrativas que complicavam bastante o rastreamento dos vinhos. Mas chegar a Rudy era uma questão de tempo. Quanto mais garrafas suspeitas ele colocava no mercado, menos discreto ele se tornava em relação às suas “raridades”. Obviamente, com uma plêiade de especialistas atrás dos larápios do vinho e o FBI instigado por desvendar golpes elegantes, não demoraria para Rudy ser desmascarado.

As imagens da sua cozinha, divulgadas pelo FBI, é uma espécie de caos da contravenção, com um pandemônio de rótulos, garrafas vazias, rolhas e equipamentos para extraí-las e recolocá-las, anotações de blends para preencher as garrafas, alterações de datas, enfim, todas as pistas que a polícia precisava para comprovar o esquema de falsificações estavam espalhadas pelo cômodo, sem qualquer disfarce. Ainda assim, entre os que conviveram com Rudy nota-se um tom de agradecimento pelas grandes experiências proporcionadas por ele e uma vontade assumida de perdoá-lo pelos crimes.

Conclui-se que Rudy tinha, de fato, muitas garrafas autênticas que compartilhava com os amigos, era um obstinado conhecedor de vinhos e acabou se perdendo neles. Ele foi condenado a pagar U$ 28,4 milhões de dólares às suas vítimas e está cumprindo 10 anos de prisão na Califórnia. Para explicar os dólares que esbanjava logo que que deu as caras nos EUA, os investigadores estabeleceram uma conexão entre ele e o maior golpe financeiro já realizado em Jacarta. “Rudy Kurniawan foi o Grande Catsby da Geração X”, bem definiu James Wynne, agente do FBI, especializado em fraude de obras de arte que atuou no caso. Rudy não foi o primeiro, não será o último, mas já é um dos maiores falsificadores de vinho da história.

Outro caso envolvendo as legendárias garrafas que teriam pertencido a Thomas Jefferson é contada no livro O Vinho Mais Caro da História, de Benjamin Wallace (Jorge Zahar Editora). Aqui, a garrafa, uma Lafite 1787, foi vendida num leilão da Christie’s, em 5 de dezembro de 1985 por 156 mil dólares. Foi comprada pelo editor Malcolm Forbes. A peça pertencia ao alemão Hardy Rodenstock, conhecido por “farejar” vinhos perdidos. Era um falsificador. Saúde!

Sour Grapes (Netflix): Documentário, 85 minutos. Realizadores: Jerry Rothwell e Reuben Atlas. A história de Rudy Kurniawan, um dos maiores falsificadores de vinho da história.

 

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