Cronicando

Os nossos valem menos?

por Maria Angelica
Publicado em 10 de junho de 2020

É uma guerra, contínua, dessas que paralisa não somente o corpo, mas, pior, a mente e a vontade. No Brasil tudo é superlativo: a miséria, os assassinatos, as doenças, a ignorância, a desinformação, a deseducação. Superlativo também é o assalto disfarçado de formas e meios legais. O roubo, o furto da dignidade; o assassinato dos sonhos. Se no ano passado o governo comemorou a redução recorde de crimes violentos, morreram “apenas” 41.635 pessoas, quase 10 mil a menos que em 2018, nos primeiros meses deste ano são mais de 8 mil vidas perdidas para a violência, 8% a mais que no início do ano passado. Com certeza, esses dados já devem estar desatualizados. A violência é diária e não encontra obstáculos para ceifar vidas. Lembremos daqueles que também perderam a batalha para a Covid-19, números que só crescem apesar de o governo minimizar com a maior desfaçatez a tragédia. Como no Brasil “desgraça pouca é bobagem”, nos acostumamos de certa forma com o morrer cotidiano pela doença, miséria, descaso. Vivemos em uma permanente letargia. Nós – eu me incluo nessa -, amenizamos a “culpa” com uma postagem aqui, outra ali; um rápido discurso mais exaltado com os nossos; um solilóquio revoltado e nada além disso. Mas, às vezes, saímos como “boiada desembestada” dessa “covardia social” quando algo longe do nosso “lar” acontece.


Na semana passada me chamou bastante a atenção as manifestações revoltadas nas redes sociais e em ruas de algumas capitais do Brasil: São Paulo, Rio, Curitiba. Os manifestantes seguravam cartazes em inglês “Black Lives Matter”, assim como os norte-americanos que saíram às ruas em protesto pela morte, no dia 25 de maio, de George Floyd, um homem negro de 46 anos, sufocado pelo joelho de um policial branco, em Minneapolis, Minnesota. Floyd, enquanto pôde falar, avisava ao policial que não estava conseguindo respirar. Em vão. Ele morreu após pouco mais de oito minutos sendo sufocado contra o asfalto. Os protestos que eclodiram em diversas cidades dos Estados Unidos reverberaram mundo afora e, como já disse, no Brasil. Corretíssimo. Mas, como sempre tem “mas” em terras tupiniquins, eu me perguntei enquanto assistia à revolta brasileira com “legendas” em inglês: “E os nossos negros, valem menos?” Sim, valem menos porque os assassinatos em massa de homens, mulheres de todas as idades, principalmente os mais jovens, no meio do fogo cruzado entre o oficial e o não oficial, lotam os cemitérios. E nós, sim, nós (porque eu me coloco no meio da maioria que aceita de forma passiva esse genocídio) não protestamos como lá na terra do Tio Sam protestam.

 

Março de 2014.

Claudia Silva Ferreira, 38 anos. Negra e pobre. Claudia foi baleada com um tiro no pescoço e outro nas costas durante um confronto entre policiais e traficantes, no Rio de Janeiro. Ela foi levada em uma viatura da polícia militar ao Hospital Carlos Chagas. No caminho, o porta-malas abriu e Claudia ficou pendurada pela roupa no para-choque; arrastada pelo asfalto por mais de duzentos metros, os policiais só pararam depois de o sinal fechar e ouvir os alertas de pedestres e motoristas. Dois deles desceram, recolocaram o corpo de Claudia no porta-malas e seguiram viagem. A auxiliar de serviços gerais, mãe de quatro filhos, morreu. Protestos? Que eu me lembre, somente o da própria comunidade. Eu não me recordo de ter saído às ruas em meio a manifestações pelo país.

 

 

Fevereiro de 2019.

Pedro Henrique Gonzaga, 19 anos. Negro e pobre. O assassinato de Pedro é semelhante ao de Floyd. Pedro estava com a mãe, uma esteticista, no Extra da Barra da Tijuca, Rio de Janeiro. De repente, Pedro teve um surto e saiu correndo. Um segurança o imobilizou, deu um mata-leão nele. Clientes do supermercado pediram para que o vigilante o soltasse pois Pedro estava roxo, não conseguia respirar. O segurança ignorou a todos. Uma das pessoas que imploraram era a mãe da vítima. Ela também sofreu agressão, foi empurrada, caiu, mesmo se identificando como a mãe do rapaz. Pedro foi sufocado até a morte. Pedro deixou um filho órfão. Protestos? Sim, houve protestos nas redes sociais e manifestações em várias unidades do Extra do país. Porém, nada que nos envergonhasse a tal ponto de exigir mudanças concretas em abordagens realizadas por policiais, seguranças, vigilantes. Nada, nada que levasse as autoridades a mudar o curso dessa triste história de racismo, discriminação, preconceito que recai vergonhosamente sobre a população negra e pobre.

 

 

Abril de 2019.

Evaldo Rosa dos Santos, 46 anos. Negro e pobre. O músico e segurança foi assassinado por soldados do exército. Evaldo dirigia um Ford KA branco. Com ele estavam ainda a mulher, o filho de 7 anos, o sogro e uma amiga do casal. Era domingo, a família seguia para um chá de bebê. Quando o carro passou por uma área militar, em Guadalupe, Rio de Janeiro, doze soldados do exército dispararam contra o veículo. As pessoas que viram a ação contaram que não houve aviso nem nada para que Evaldo parasse. Os soldados disseram ter sido informados, minutos antes, que assaltantes em fuga dirigiam um carro branco. A mulher de Evaldo contesta essa versão. Ela relata que não havia fuga; não havia assalto; não havia tiroteio; simplesmente os soldados atiraram. Ódio e despreparo “fuzilados” em 257 tiros, mais de 80 cravejados no veículo; vários acertaram Evaldo. E não foi só o músico que morreu nessa ação desastrada. O catador de latinhas, Luciano Macedo, ao tentar ajudar as vítimas, foi ferido e perdeu a vida onze dias depois. Sete dias após a morte de Evaldo, manifestantes de movimentos negros protestaram na Paulista, em São Paulo. E só! A comoção não passou disso, não mobilizou milhares de pessoas diante de tamanha crueldade.

 

Maio de 2020.

João Pedro Matos Pinto, 14 anos. Negro e pobre. Filho de uma professora e um comerciante. João Pedro foi baleado dentro da casa de parentes onde brincava com os primos. Testemunhas contaram que policiais entraram na casa, jogaram bomba de gás e atiraram. Era uma operação contra o tráfico no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro. A versão policial diz que o menino foi atingido no confronto com traficantes em fuga. Os familiares não puderam entrar no helicóptero para onde o garoto foi levado e só souberam da morte de João Pedro no dia seguinte. Protestos? No dia 26 de maio, até houve o chamado da Coalizão Negra por Direitos a uma mobilização nacional nas redes sociais, sete dias após a morte de João Pedro. Na época do crime, não me lembro de ter visto qualquer manifestação popular no Brasil.

Os casos citados aconteceram no Rio de Janeiro, mas poderia ser em qualquer lugar. Histórias assim se repetem com uma frequência alarmante em nosso país. São só exemplos de assassinatos de pessoas negras e pobres no Brasil sem que a violência dessas mortes nos leve a protestar. A impressão que temos é que os representantes da Lei consideram os lares pobres como “terra de ninguém”. É quase uma ficção imaginar as cenas repetidas à exaustão nos morros, favelas, comunidades, cortiços ocorrer nos bairros milionários, ricos, da classe média alta, majoritariamente habitados por brancos. Não, eu, mulher branca, classe média, não posso sequer imaginar o sofrimento de uma pessoa negra e pobre. Não tem como, impossível. Vivemos no Brasil e ao mesmo tempo em países completamente distintos. Se a Lei nem sempre é respeitada no meu Brasil, como acreditar que haja Lei no Brasil dos miseráveis?

 

Maio de 2020.

Miguel Otávio Santana da Silva, 5 anos. Negro e pobre. No dia dois a mãe de Miguel, Mirtes Renata Santana de Souza, doméstica, foi trabalhar no apartamento de luxo de seus patrões, no Recife. Mirtes saiu para passear com o cachorro. Deixou o filho sob os cuidados de sua patroa, Sarí Mariana Gaspar Corte Real, mulher do prefeito de Tamandaré, no litoral Sul de Pernambuco, Sergio Hacker Corte Real. Quando a mãe saiu, Miguel quis ir atrás e entrou no elevador. Sarí conversou com a criança, em seguida apertou o botão da cobertura e abandonou Miguel sozinho no elevador. O desfecho desse descaso já sabemos. Miguel caiu do nono andar e morreu. Apenas um protesto pelas ruas de Recife até a portaria do prédio. Nada comparável à comoção que se viu no caso de George Floyd. Não que a morte de Floyd não importa, sim importa! Atinge a todos. No entanto, creio que devemos aprender com os norte-americanos a dar valor ao que é nosso; ao que fere nossos direitos, nossa identidade; ao que nos mata; ao que nos paralisa; nos sufoca e nos cala. Nós precisamos antes de mais nada entender que somos, de fato, uma sociedade racista; que a “escravidão” infelizmente corre nas veias desse país das desigualdades criminosas e assim aprender a conjugar a Lei para todos porque todas as vidas importam. Vida não tem cor, nem raça, nem gênero, é vida…e basta!

Fotos: arquivo pessoal – Facebook

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