“Hoje é o pior dia da minha vida!” Essa constatação é do Guilherme, meu sobrinho-neto de 5 anos. Nos encontramos em um passatempo por ele inventado. O Gui é craque em imaginar e inventar games virtuais em que solitariamente brinca minutos e minutos seguidos consigo na frente da casa onde vive. Com as mãozinhas ele carrega a distração imaginária; feito um robô anda de um lado a outro; para frente e para trás. Ao me convidar a entrar no palco criado com linhas e compartimentos invisíveis, nos tornamos adversários do jogo com regras ditadas por ele. Eu nunca consigo acompanhar as jogadas, os movimentos. O Guilherme quer ganhar sempre. Eu igualmente. Ai de mim se me declaro vencedora!
– Não, não!, grita.
– Como assim, Guilherme?
– Você não entendeu nada do jogo.
– Ué, mas você muda as regras toda hora. Assim não vale.
– Sim, mas são as minhas regras e você tem que respeitar as regras.

Pois é, respeitar as regras. Até parece que estou falando com um ditadorzinho. Mas, no mundo de uma criança só, essas regras são flexíveis, prestes a mudar caso o garotinho se dê conta de que vai perder. E eu nem sempre ganho de forma justa porque me antecipo para declarar-me vencedora. Acabamos por discutir e ficar de mal. Ele emburra de um lado e eu de outro. Dura segundos essa encenação de ambos. Logo começamos a correr em círculos; a chutar as bolas em direção incerta e, desta vez, nada de regras. Rimos sem parar quando trombamos. Ele cai sentado. Corro para socorrê-lo e segurando em seus bracinhos magrinhos o giro no ar. Ficamos tontos, caímos juntos, é só risada. Até minha irmã chamar a atenção: “Não deita no chão, olha o coronavírus.” Pronto, a palavra-chave a findar qualquer brincadeira, qualquer diversão.
Lá vamos nós ao ritual de lavar as mãos, passar álcool gel 70%. Credo, que coisa chata, nunca fomos tão ritualísticos (eu penso). É para o bem da nossa própria saúde. Mas que está chato, ah, está. Eu me agacho e o Guilherme permanece em pé para que possamos olhar nos olhos na mesma linha, semelhante altura (até parece que sou alta). Ele se põe de cócoras, também. Então pergunto: “Por que você disse outro dia que era o pior dia da sua vida?” O Guilherme para, me olha por um tempinho sem nada dizer e aí responde que “sentiu vontade de vomitar”, por isso foi o pior dia da vida dele até aquele momento. Não sei se senti vontade de rir ou de chorar. De verdade me deu um aperto no coração. Eu posso entender esse aperto, essa angústia que por vezes repetidas me assaltam; tenho ferramentas para abstrair essa coisa a nos tirar o ar; o Guilherme, ou qualquer criança, creio que não. Não era o vomitar de algo ruim que comeu. Não, era de fato um vomitar de um dia que para ele nada deu certo; não se entendeu direito com os pais; com a avó; fez xixi fora do vaso: “Fiz tudo errado”, revelou.

O que é fazer tudo errado para um pequeno nessa altura de sua vida? Penso que tenha faltado ar, espaço, outros do seu tamanho para dividir e divertir o dia. Então, em meio a todas essas incertezas, essas faltas, ausências, “…a vontade de vomitar.” Até o momento os “Guilhermes” não entenderam ao certo o ano que começou e não começou e já vai acabar sem acabar. Encostado na parede, com as mãos atrás das costas, na altura do bumbum, declara: “Em 2021, eu vou encontrar…”, e desembucha a lista das pessoas que deseja encontrar; abraçar; com quem irá brincar; a festa de aniversário que não pôde fazer ao lado da priminha Lívia e dos amiguinhos; da escolinha para a qual diz tchau todas as vezes em que passa de carro na frente dela.
Perante tantas vidas perdidas à Covid-19 e outras doenças; vidas perdidas para a miséria humana, à fome; vidas perdidas para o racismo; para a solidão; escrever sobre a vontade de vomitar de um menininho de 5 anos chega a ser desrespeitoso? Eu pergunto porque não tenho a resposta. Mas, como meu mundo se reduziu ainda mais nesses tempos incertos, o Gui é um dos meus mais assíduos interlocutores e animador (claro, tenho meu irmão Carlos a me orientar, como professor que é, quando começo a me perder nos descaminhos ou nos textos; as ligações pontuais e diárias de meu irmão Zé no viva-voz com minha cunhada Bila; as conversas ao redor da mesa da cozinha de minha irmã Bernadete, meu cunhado Pedro; os puxões de orelha, porque não paro, da minha irmã caçula e enfermeira, Stella; a presença virtual e presencial de sobrinhos, sobrinhas; minha prima Claudete e sua voz suave e pausada que leio nas entrelinhas de suas ponderações acerca do que escrevo; meus velhos e novos bons amigos; uma família imensa, de sangue ou não, para não reclamar de abandono).

Mas é com o Guilherme que de adulta me transformo em uma criança despreocupada com as regras em meio a tantas regras e exigências reais. Para dizer a verdade, nem sempre sei precisar se minha vontade de vomitar é física ou psíquica. Falar a respeito disso pressupõe-se que me falta sensibilidade em dias tão tenebrosos. E qual o problema de enfiar o dedo na garganta e botar para fora o “não sei o quê” nos dias que amanhecem e não quero me levantar da cama? Que não sei ao certo o que fazer apesar de não ter feito tantas coisas como atualmente? Quando dias assim despertam esse ser em mim, logo planejo uma escapadinha em direção ao “castelo encantado” de jogos do Guilherme e me submeto obedientemente às regras dele só para subvertê-las e rir muito das pequenas transgressões que me mantêm lúcida… acho! (risos)
Fotos: Arquivo pessoal
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