Para o teórico francês Christian Metz, em seu livro Linguagem e Cinema (retomando conceitos desenvolvidos por Gilbert Cohen-Sérat em 1946), podemos analisar um filme através da diferenciação entre o fato cinematográfico e o fato fílmico. O fato cinematográfico se relaciona com um “complexo mais vasto”, o cinema antes da realização do filme e seus aspectos econômicos, sociológicos e tecnológicos, enquanto o fato fílmico é mais delimitado, denominado como “um discurso significante localizável”, é o filme feito, com o qual é permitido a relação com outros textos. Portanto, recorremos a esses conceitos para pensarmos a nova produção do diretor espanhol Pedro Almodóvar, “Os Amantes Passageiros” (2013).
Temos em “Amantes”, em um avião descontrolado, um grupo de excêntricos passageiros, incluindo o trio de comissários de bordo e dois pilotos, que começam a fazer confissões íntimas, acreditando que estão prestes a morrer. Acrescente a isso uma grande dose de mescalina, que é servido em um drink, e temos uma situação que beira o frenesi, caótica de segredos, desejos e exageros que se entrelaçam.
Em relação ao fato cinematográfico, o novo filme de Almódovar foi realizado em uma Espanha em crise, que agoniza diante de problemas econômicos que há tempos não assolavam o país. Com uma cinematografia que produziu seu grande momento nos idos dos anos 60, 70 e 80, com nomes como Luís Buñuel, Carlos Saura, Victor Erice, Bigas Luna, etc, Almodóvar tem se tornado uma voz quase solitária nesse novo cinema espanhol de exportação. Acostumado com uma Espanha multicultural e multicolorida, das touradas e do flamenco, Almodóvar encontra nessa nova situação econômica uma crise que também assola seu cinema. Consagrado como um dos grandes diretores da atualidade, que pode produzir o filme que quiser, Almodóvar encontra-se em um terreno de liberdades que poucos cineastas possuem, na Espanha ou no mundo. Dono de um estilo singular, que virou uma marca registrada, sendo nomeado de “almodovariano”, trabalha sempre com fiéis colaboradores que se repetem em seus filmes, entre atores e equipe técnica, o que facilita essa criação de um universo tão particular. A soma desses fatores fazem com que Almodóvar tenha suas obras ansiosamente aguardadas por um público que lhe é fiel e que são depositários das transgressões engendradas por sua mise-en-scène.
Mas é no fato fílmico que percebemos os problemas em que Almodóvar se envolveu. Distante do humor escrachado que o havia consagrado, desde o filme Kika (1993), com “Amantes” ele retorna a esse ambiente que lhe é tão caro: personagens histéricos, ambiente kitsch e sexualidade exacerbada.
Assim como a Espanha em crise, como o avião sem rumo (clara alusão à situação dessa sociedade espanhola, perdida em meio a corrupção de seus governantes), essa nova obra de Almódovar também padece da falta de um rumo a seguir. Com personagens extremamente estereotipados, assumido pelo próprio diretor como o filme mais gay de sua carreira, como se isso fizesse alguma diferença, vemos na tela situações forçadas, diálogos banais, embalados em um pacote de referências ao que outrora poderia ser chamado de um estilo “almodovariano”, mas que, hoje, apenas parece ser uma “cópia” de si mesmo.
Na verdade, o que vemos não é um retorno às origens de sua estreia na direção de longas-metragens, que ocorreu em 1980 com o filme “Pepi, Luci e outras garotas de montão”, comédia transgressora e desvairada, e sim uma “colagem” de momentos, às vezes sem a inspiração de outrora, já vistos e usados à exaustão em sua filmografia.
Cineasta inventivo, que conseguiu marcar seu nome em uma Espanha recém-saída de anos do domínio da ditadura do General Franco, o cinema de Almodóvar se mostrou porta-voz dessa nova ordem social espanhola recém-instaurada. Percebe-se nesse início uma urgência em escancarar o que até então era proibido nessa Espanha fervorosamente católica e conservadora, dando voz a personagens marginalizados. Em uma apoteose de artistas que afrontam o status quo do pós-franquismo, conhecido como a “movida madrilenha”, Almodóvar é o transgressor e iconoclasta por excelência, mostrando uma Espanha oprimida, que reage, após anos de silêncio, colocando o desejo e a ruptura com as convenções sociais como a força motriz de sua encenação.
Trinta e três anos depois dessa sua auspiciosa estreia em longas-metragens, Almodóvar carece de “alguém” ou “algo” a “quem” ou “o que” confrontar. Um cineasta que deixa o fato cinematográfico impregnar seu fato fílmico, não sendo por acaso que a crise econômica atual veja-se refletida de modo tão sintomático em sua nova obra.
Com “Amantes”, que também foi muito criticado na Espanha, Almodóvar chega em um momento da carreira na qual precisa ser injetado de um novo fôlego. Essa “crise” de criatividade já se mostrou anteriormente, coincidentemente em sua última comédia, o já citado Kika, mas que logo em seguida nos deu os excelentes “A flor do meu segredo” (1995), “Carne Trêmula” (1997), “Tudo sobre minha mãe” (1999) e “Fale com ela” (2002).
Embora divertido em alguns momentos, “Amantes” é um dos filmes mais decepcionantes da carreira do diretor. Resta-nos apenas esperar que essa crise seja passageira e que ele possa aterrissar em algum local seguro, para o alívio de todos os seus seguidores.
Veja o trailer abaixo e acesse programação nos cinemas de Campinas:
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