Conversa de cidade

O Vilão do Busão

por Mirza Pellicciotta
Publicado em 2 de abril de 2012

O meu dia da mentira quase terminou sem merecer o titulo que tem, não fosse um episódio lastimável que entupiu o corredor de um ônibus e a minha paciência. Antes de tudo, queria confessar que sou muito chato para certas coisas como, por exemplo, o respeito que exijo para minha mania de colecionar bugigangas, minha irritação quando tentam ordenar minha bagunça (preciso do meu caos particular e ponto) e, para exemplificar o caso do ônibus, odeio quando as pessoas sentam em lugares diferentes daqueles impressos no bilhete que elas mesmas compraram.     

Afinal, se eu escolhi, com meus próprios critérios, uma poltrona dentre as vagas que fosse mais adequada, porque raios mudo de opinião assim que entro no ônibus, gerando um constrangimento desnecessário para as duas partes envolvidas? Porque quem faz isso, não apenas senta em um lugar que não é seu, como também tem a cara de pau de, quando defrontado com a reivindicação do passageiro correto, soltar o clássico “você não se importa de sentar em outro banco?” Pode parecer loucura, mas se eu escolhi um lugar específico, quer dizer que sei que prefiro passar as próximas horas de viagem ali por “n” motivos que, primeiramente, não interessam ao intruso. E ainda sou taxado de “o chato da viagem” por não aceitar a proposta. Sinceramente, não consigo entender essas situações nas quais a moral é invertida e é considerado deselegante quem tenta reposicionar os papeis de mocinho e bandido.

Desabafos a parte, volto ao fim do meu dia da mentira. Minha irritação não foi exatamente pelo fato de haver um intruso no meu banco, o 23, mas sim por, supostamente, existirem duas passagens para a mesma poltrona. Quando pressionado por mim para que saísse do MEU lugar, Emerson, que vinha de Pouso Alegre-MG e já havia tomado como seu o banco 23 até o fim da linha, em Campinas, bateu o pé afirmando que havia comprado o mesmo número que eu. Quase todos os lugares estavam ocupados e os passageiros já estavam suportando um atraso de 20 minutos para a saída do carro.

Para solucionar o caso, precisávamos comparar as passagens e ver quem estava mentindo: eu, Emerson, ou a empresa, que alegava ter vendido apenas um número 23. Acontece que Emerson simplesmente não encontrou o recibo da passagem. Segundo as orientações da ANTT – Agência Nacional de Trânsito Terrestre, todo passageiro tem o dever de guardar o comprovante da passagem até o fim da viagem, mas parece que a mochila de Emerson o havia engolido. Minutos depois do vasculhamento entre papeis de bala, rascunhos, chaves, passagens antigas e outras miudezas, o rapaz chegou à conclusão de que não encontraria a prova de sua inocência. O motorista, que estava parado comigo, no meio do corredor do ônibus, havia acabado de resolver o mesmo problema na poltrona 16. Jeniffer e Vitor compraram o mesmo número. A resolução encontrada pela empresa, apesar de no caso parecer mais justo o clássico par ou ímpar, foi mudar Vitor de lugar, fazendo com que ele se sentasse em um banco qualquer que estivesse vago, ou seja, um lugar não escolhido por ele.

É bem provável que se eu aguardasse o fim do caso até que minha vontade fosse aceita, ou seja, Emerson saísse do seu lugar, eu ocupasse o 23, e ele que se virasse para se sentar, todos se voltariam contra mim, o “vilão do busão”. Decidi dar um voto de confiança a Emerson e acreditar nele, mesmo sem a aparição da passagem, já que, devido ao ocorrido bancos a frente, no 16, preferi acreditar na culpa da empresa de ônibus, que há anos atua no transporte interestadual de passageiros entre Minas e São Paulo sem uma administração confiável e condições dignas de estrutura e segurança aos usuários.

O motorista ainda reclamou que aquele não era o seu dia e teve a petulância de me perguntar se era verdade mesmo o que estava acontecendo. Eu pensei (querendo dizer): “claro que não. Eu e o Emerson quisemos pregar uma peça em você no dia da mentira e o tiramos do volante só pra atrasar a viagem”, mas na verdade só dei uma risada irônica querendo demonstrar minha impaciência. O assistente do motorista, no mesmo momento, se disse preocupado pelo atraso que estávamos causando e me perguntou se eu aceitaria me sentar em alguma outra poltrona que estivesse vaga. Como já havia decidido ceder, disse que tudo bem, para o alívio dos funcionários e a surpresa de Emerson, que emendou um “tudo bem mesmo?” desacreditado.

De cabeça baixa, como um lutador recém-nocauteado, me sentei na 14, refletindo sobre o que havia acabado de acontecer ali atrás: uma suposta mentira de Emerson (apesar de ter ido com a cara dele, não deixo de imaginar que ele pudesse ter mentido que havia comprado aquela poltrona só para não ter que se sentar no corredor) fez com que o funcionário da empresa mentisse que estava preocupado com os passageiros que se atrasariam. Para remediar a situação, eu menti que estava tudo bem ter que mudar de lugar para evitar chateações para os outros passageiros, que não tinham nada a ver com a história.

Sem entender meu próprio comportamento, me dei conta de que o que valeu não foi o fato de haver mentira ou não, mas sim a intenção da dita cuja e, nesse quesito, tenho total tranquilidade em afirmar que a minha mentira só existiu pelo bem alheio. Se houve mentira maldosa vinda dos outros envolvidos da história, posso relevar, apenas pela ludicidade do 1º de abril, e afirmar que da próxima vez não serei tão bonzinho.

Fui para uma poltrona virada para o corredor, com uma acompanhante que exalava nicotina pelos poros e manteve a janela fechada pelas duas horas de viagem. Para passar o tempo, queria prosseguir a leitura de Furação Elis, a biografia da cantora, que parei na página 47, mas parece que a empresa só pensou em quem se senta na janela quando arquitetou as luzes de seus carros, como se só eles tivessem o hábito da leitura. Resolvi pular uma geração da família Camargo Mariano e escolhi Maria Rita, dessa vez através dos fones de ouvido, para que os minutos fossem menos monótonos. Ironicamente, os primeiros versos que ecoaram foram “dos gardenias para ti/ con ellas quiero decir…”. Pareceu mentira. A última da noite. Já não bastasse uma Gardênia. Duas era demais!

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