Eu lavava as compras, de repente, um barulho forte me fez olhar em direção à varanda. Vi minha gatinha, a Pikachu, cambaleando. Parecia aqueles caminhões quando dão “L”. Perninha esquerda para cima, traseira de um lado, a frente do corpo em direção oposta. Eu corri para socorrê-la. Não entendi o acontecido. Talvez, mais uma convulsão que ela costuma ter. Talvez, tentou pular de uma cadeira em direção à pia para beber água na torneira e errou o bote. A acudi. Olhar assustado. Muda. Confusas, ela e eu. Meu coração disparou. Senti medo de perdê-la. Alguns poderão dizer:
– É só um animal.
É, é um animal! Eu sou um animal! Carrego comigo uma certeza: assim como esmago uma barata, sou esmagada. Desde pequena, convivemos, os bichos e eu. Mais de década, a Pikachu e o Gattino são meus companheiros. São eles que sentados ao meu lado na poltrona escutam a ladainha inconformada com alguma questão política, social, sei lá, um olhar em “L” atravessado no meu caminho. São os dois que me acordam logo cedo, todo dia às seis da manhã. Clamam por água limpa e comida fresca. Ao insistir em desobedecê-los, levo uma espirrada na cara da Pikachu e foge da fúria verbal.
– Nojenta!
Dorminhoca que sou, viro de lado. O Gattino se aboleta nas costas. Eu me reviro, tento desestimulá-lo, o empurro, nem sempre delicadamente. Ele se acomoda como só um felino é capaz de fazê-lo e, de leve, toca repetidamente meu rosto. Enfio a cabeça debaixo da coberta. Então, o bichano estica a patinha e roça minha mão. Primeiro, só com a almofadinha macia. Resisto. Entra em ação a unha afiada cravando em minha pele.
– Caramba, você me machucou.
Sem se importar com mais um arranhão, sai requebrando no compasso dos miados insistentes. A deixa para definitivamente sair da cama e dessa prostração matutina.
Eles não pediram para estar aqui comigo. O Gattino encontrei jogado em uma esquina, cheirando matinho, em 2004. Seis meses depois, fiz o que jamais farei de novo: comprei uma bolinha de pelo que se esfregou em meus dedos enfiados nas aberturas da gaiola com filhotes à venda. Comércio cruel. Por vezes, eu os olho e a mim vejo aprisionada sem poder correr livre, sem medo do lobo-homem que pode encurtar meus dias. Os miro e imagino os dois sorrateiros, subindo em árvores, muros, atrás de passarinhos, farejando presas, fugindo de seus predadores. Mas, não! Dia após dia cumprem semelhante rotina. Eu me enquadro nesse desenho rotineiro. Eu queria voar em um balão. É meu sonho de liberdade. Eu gostaria de levar os dois comigo e que nos divertíssemos em meio às nuvens olhando, distante, as pequenezas lá do alto.
A Pikachu respira ofegante, sente dor. Eu a coloco em uma caixinha e saio apressada em busca do socorro da veterinária. Antes de a porta se fechar, entram no elevador Milena e os pais. A menininha de três aninhos olha amorosamente para minha gatinha. Ela e seu irmãozinho Vitor, seis anos a se completar, são os mesmos que no início da pandemia, em março, escorregavam pela fresta da porta do apartamento os bilhetinhos desenhados para meus gatinhos. Foram diversas trocas de mensagens em meio ao solitário isolamento. Eu respondia em nome da Pikachu e do Gattino. Quando me veem, exclamam:
– Olha a tia dos gatinhos! Eis o passaporte para liberar meu riso.
Para a Milena e o Vitor, os gatinhos conversam, sentem, existem, interagem. Não estão em lados opostos. Por isso, a compaixão em seus olhos ao responder que a Pikachu estava passando mal. Filhinha, mãe e pai se compadeceram desse sofrimento e desejaram melhoras. Agradeci, sai apressada. Era uma quarta-feira à noite. No dia seguinte, enquanto o sol sumia entre vãos dos prédios e da catedral de Campinas, escutei um toque-toque. Não era a campainha estridente a pôr o gato assustado a se esconder em um dos seus esconderijos. Não! Um toque-toque gentil, quase receoso. Abri a porta e vi Milena e a mãe. A pequena vizinha trazia presentes para a Pikachu e o Gattino. Uma bolinha rosa com guizo e um ratinho amarrado em um cordão elástico preso a uma varinha, mágica. Desejosas de notícias da Pikachu, fui de cômodo em cômodo, toca em toca, atrás da gatinha e a levei até elas.
Eu me agachei para que Milena passasse suas mãos entre os pelos macios. A Pikachu abaixou a cabeça, fechou os olhinhos e quietinha aceitou os afagos. Trocamos palavras sobre o estado de saúde dessa persa com cara de mal-humorada, é só aparência. Soube que o Vitor está com a avó materna correndo livre entre matos, chão de terra, abraçado a espigas de milho no sul do Brasil.
– Em todas as fotos ele está sorrindo, conta aliviada a mãe.

Quem diria que os trajetos, os encontros, coisas corriqueiras nos fariam tanta falta. Neste exato instante me dei conta de que desde o início de 2020, os bilhetinhos e agora esses presentes são para meus gatos, é verdade, mas, por extensão, a mim. Um afeto partilhado. Uma presença acolhedora. O amor desinteressado não prescreve, não pesa, não sufoca, não aprisiona, libera. Ao me recolher novamente em meu apartamento pensei na frase da raposa ao Pequeno Príncipe, banalizada por demais, dos discursos de misses a uma crônica qualquer como esta, porém verdadeira:
– Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas.
Precisamos urgentemente uns dos outros, tenham duas, quatro ou quantas patas tiverem. Pertencemos à mesma cadeia da vida.
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