Acordo para mais um dia, outro de isolamento. No meu exíguo espaço sigo uma rotina praticamente espartana. É cedo. Tomo um rápido banho, me olho no espelho, digo palavras de autoestímulo e vou à luta. Preparo um café preto, coloco no forno seis pães de queijo, pronto! Depois de tomar meu café, o que fazer? Arrumar o que está desarrumado; retornar à leitura de “O Colóquio dos Cachorros”, de Miguel de Cervantes; atender aos miados insistentes dos meus dois gatos que ora querem água, ora comida, ora carinho mesmo. E quando não cedo às suas exigências, eles se esfregam entre minhas pernas, sobem no meu computador atrapalhando meu ócio forçado, mordiscam meu tornozelo até vencer a minha resistência em dar-lhes atenção. Aonde vou, seguem-me, como sombras. Penso: “Essa determinação em me obrigar a fazer o que eles querem é uma lição de vida para que eu lute pelo que considero importante”. Uma autoajuda empírica ao alcance dos meus olhos.
Aposentada que sou, contra a minha vontade, há meses vivo longe do frenético trabalho na redação de uma TV; aprendo, ou melhor, reaprendo a necessária conjugação da paciência e do autocontrole. Assim busco vencer mais um dia desacelerado, viver o simples, o silêncio, o tempo da escuta pessoal, administrar as 24 horas que antes voavam e agora vagam ainda mais lentas nesses dias em que o Novo Coronavírus reina no mundo. Epa! Acho que tem algo errado nessa minha afirmação. Por um instante eu paro com esse monólogo. Da janela enxergo uma cidade acelerada, bem diferente do deserto em que se transformou semanas atrás. Aos poucos entra na contramão da prescrição de médicos, políticos, especialistas, irmã enfermeira, amigos, vizinhos, desconhecidos e toda uma gama sem fim de correntes e postagens em redes sociais. Em uníssono todos repetem: “#fiqueemcasa”. Mas as ruas do centro de Campinas estão cheias de pessoas e veículos.
Na noite anterior ao dia de hoje, quando precisei sair para comprar um remédio, eu me senti uma extraterrestre de máscara. Muita gente caminhando, correndo no Centro de Convivência. Eram jovens, pessoas de meia idade, como eu, e mais velhas como uma senhora beirando seus 80 anos. Ela passeava tranquilamente com a ajuda de uma acompanhante. Havia também um pai com seus dois filhos bem pequenos. Ninguém usava máscaras ou mantinha distância segura. Todos olhavam para mim como se eu estivesse exagerando na minha proteção e, por tabela, na deles.
É, realmente são tempos esquizofrênicos. Há uma dicotomia entre os boletins médicos de aumento dos infectados pela Covid-19; do número de mortos no país e planeta afora; da pandemia em que se transformou o meu, o teu, o nosso mundo e o que observo da sacada do meu apartamento. Rapidamente relembro do livro “O Pequeno Príncipe”, de Antoine de Saint-Exupéry. Não sei porque exatamente, mas faço uma comparação entre o principezinho, de cabelos da cor do ouro e seu cachecol vermelho, vivendo em seu asteroide B-612 com seus três vulcões e uma rosa para regar e amar, com o planeta habitado por mais de sete bilhões de pessoas; por mim, meus gatos, minhas flores e meus medos inexplicáveis. Sim, “o essencial é invisível aos olhos”.
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