Cronicando

O menos é muito mais

por Maria Angelica
Publicado em 29 de julho de 2020

Dias desses recebi de minha prima Claudete, linguista e psicanalista, um texto compartilhado pelos “Fãs da Psicanálise”. É um emocionante depoimento de Isabel Allende, jornalista e escritora, sobrinha de Salvador Allende (1908 – 1973), presidente deposto por um golpe de Estado no Chile. Como sabemos, Salvador Allende morreu durante o cerco do exército comandado por Augusto Pinochet ao Palácio Presidencial de La Moneda, em Santiago. Pairavam dúvidas sobre como morreu; em 2011 uma investigação forense confirmou que Allende cometeu suicídio.

Também recebi várias fotos do centro de Campinas abarrotado de gente porque a cidade entrou na fase laranja e o comércio pôde reabrir, com restrições. Aqui não vai nenhum juízo de valor a respeito desse comportamento, não há como avaliar o que se passa com cada uma daquelas pessoas entrando e saindo das lojas com sacolas nas mãos, famintas por consumir. Eu sou propensa a pensar que a maioria não suporta mais a companhia diária de uma doença à espreita de novas vítimas desavisadas (ou não).

Foto: Maria Angélica Pizzolatto

São quase 90 mil mortes no Brasil e mais de 655 mil no mundo. Óbvio que esses números, oficiais, estarão sempre defasados, pois a tempestade deve durar um bom tempo, lamentavelmente.

E foi a respeito dessa pandemia que no início de julho a escritora chilena falou, melhor dizendo, escreveu. Ela mora nos Estados Unidos. Tanto a terra do tio Sam quanto a nossa pátria amada Brasil se revezam no epicentro do Novo Coronavírus. Vivemos no fio da navalha. Então, é alentador ouvir a voz das ponderações equilibradas a nos apontar o aprendizado essencial que vai muito além de higienizar as mãos, colocar as máscaras. Precisamos higienizar a nossa mente e disso tudo tirar uma ou quantas lições forem necessárias, a começar pelo fato de que o planeta navega no mesmo barco nesse dilúvio a se alternar em ondas mais ou menos violentas.

Foto: rede social

Isabel Allende (78 anos em agosto) diz não temer a morte que para ela é um risco maior a quem está na faixa etária dos vulneráveis. Para se posicionar de forma tão resignada diante dessa tragédia mundial, bem antes ela viveu “o inverno mais longo e escuro” de sua vida. Em 1992, a escritora perdeu a filha de apenas 29 anos, após ficar um ano em coma por causa de uma doença neurológica, a porfiria. O luto e a depressão a levaram a escrever o livro que tem o nome da filha: “Paula” (de 1994). A partir dessa trágica história pessoal faz uma celebração da vida. Tem, portanto, bagagem para nos socorrer neste momento de incertezas que se abate sobre a humanidade.

O que a pandemia ensinou a Isabel Allende? “A perceber o pouco que eu preciso. Não preciso comprar, não preciso de mais roupas, não preciso ir a lugar nenhum, nem viajar. Eu acho que eu tenho demais. Eu vejo à minha volta e digo pra quê tudo isso.”

Eu, Maria Angélica, olho para o monte de sapatos acumulados, hoje guardados sem utilidade, e percebo que não precisava de tantos. Aonde vou usar todos eles? Mesmo que tudo volte ao normal já compreendi que sapatos, roupas, perfumes e tantos penduricalhos são exatamente isso, adornos. Redescobri o prazer do simples, do menos, da companhia dos bons livros a expandir, aprofundar meu mundo, minha mente, minha consciência; a me levar a viagens (sem sair do lugar) inesquecíveis, emocionantes, encantadoras. Personagens a povoar os espaços vazios que o consumo não consegue preencher.

Capa do livro “A Ilha sob o Mar”

Dos mais de vinte livros escritos por Isabel Allende, admito, li pouquíssimos, apenas três: “A Casa dos Espíritos”; “De Amor e de Sombra”, adaptados para o cinema, e “A Ilha sob o Mar”. Fragmentos deles permanecem em mim. Cito uma passagem linda da personagem de “A Ilha…, a escrava Zarité Sedella, ao recordar de quando era uma menina feliz a se mexer ao som dos tambores. Adulta, a música resgata a menina e então “Bato no chão com as solas dos pés, e a vida sobe pelas minhas pernas, percorre meus ossos, apodera-se de mim, acaba com a minha tristeza e adoça minha memória.” A literatura, a música, as artes têm esse poder de nos tirar da pequenez das coisas desnecessárias, do consumismo que nos empanturra sem nos saciar. Como ensina Isabel Allende (eu recorro a ela como poderia recorrer a tantas outras pessoas carregadas de vivências importantes que podem nos ajudar), a pandemia “…está nos ensinando prioridades.” O que é prioritário a você?

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