Cinema Literal

O maniqueísta “Divino Amor”

por João Nunes
Publicado em 8 de julho de 2019

No meu primeiro dia de aula do curso de teologia, um velho professor narrou a história de um missionário que chega a uma tribo africana para pregar o cristianismo, depois descobrir que os moradores prestam culto a uma árvore centenária.

O pastor de muitas letras e pouca sabedoria explicou que lhes trazia um Deus a eles desconhecidos que criara todas as coisas, inclusive a árvore e, portanto, Ele, e não a criação Dele, era digno de ser adorado. Incontinenti, determinou a derrubada do objeto de culto da tribo.

A estupidez daquele religioso me ensinou imprescindível lição da qual jamais me esqueci: pode-se não concordar, mas o sagrado tem de ser respeitado, não importa denominação, procedência ou natureza.

Sentimento religioso

Toda esta introdução para falar de “Divino Amor” (Brasil, Uruguai, Dinamarca, Noruega, Chile e Suécia, 2019), do pernambucano Gabriel Mascaro, em cartaz em Campinas.

O filme trata do sentimento religioso, manifestação inata ao ser humano – caso da árvore da tribo africana. Todos os povos, dos remotos aos mais letrados, cultuam alguém ou algo. Entretanto, “Divino Amor” tem um quê do obsoleto discurso marxista (defendido também por várias outras correntes filosóficas) da religião como ópio do povo.

Basta lembrarmos do astronauta Iuri Gagarin, da ex-União Soviética, país que negava Deus, mas cultuava o cadáver de um líder. Primeiro homem a viajar pelo espaço, em 1961, Gagarin teve oportunidade única de não repetir o discurso cético. Poderia, no mínimo, confrontar a pequenez dele ante a grandiosidade do universo. Também dotado de pouca sabedoria, deu um giro em torno da terra e disse: “olhei para todos os lados e não vi Deus”. Com tamanha arrogância, ele poderia passar anos no espaço que jamais O veria.

Maniqueísmo

Escrito pelo próprio diretor junto com Rachel Ellis e Lucas Paraizo, o roteiro propõe uma ficção científica encenada em 2027. O “quê” de religião como ópio se estabelece na contraposição entre a espiritualidade (sagrado) e carnaval (profano), como se fossem duas bases estanques.

Religião e carnaval podem ser bons ou ruins – na verdade, possuem os dois lados. Os religiosos desconhecem o poder da manifestação carnavalesca porque enxergam nela apenas os fins obscuros, escusos e violentos, enquanto os incrédulos não compreendem a extensão da espiritualidade por não aceitarem o princípio de que há mais coisas entre o céu e a terra do que supõe nossa vã filosofia.

Infelizmente, para os roteiristas de “Divino Amor” a espiritualidade é considerada algo ruim que substituiu algo bom, o carnaval. Ao supor esse futuro próximo, o roteiro escorrega para o maniqueísmo.

Carnaval e fé

“Tatuagem” (Hilton Lacerda, 2013) traz uma preciosidade de entendimento do que seja carnaval. Arlindo (Jesuíta Barbosa) mora na capital paulista de onde escreve para a mãe, no Recife: “Mãe, o carnaval está chegando, mas em São Paulo não tem carnaval”. Outra referência: Zé Ramalho cantando “quanto ao pano dos confetes/ já passou meu carnaval’’.

Ambos remetem ao sentido de alegria, essência do carnaval. É da falta de alegria que Arlindo se ressente em São Paulo. É do fim da alegria que lamenta o poeta: “já passou meu carnaval”. Por conter a essência de uma das mais poderosas manifestações do ser humano, assumo o risco de atribuir sacralidade ao carnaval, se pensarmos na alegria pura, genuína e ingênua.

A essência do sentimento religioso, por outro lado, é a fé. Não só não se discute fé como não se questiona, pois trata-se de um direito interno inalienável de cada um. Fé respeita-se. E quem a desrespeita perde o respeito.

Se levarmos ao paroxismo, cada um tem a própria crença. Vejamos: muitos ditos ateus valorizam a riqueza cultural da religiosidade popular como legítima manifestação de um povo. Ninguém contesta Gil cantando a belíssima “Procissão”. Ou Milton Nascimento interpretando lindamente “Paixão e Fé” (Tavinho Moura e Fernando Brant).

Preconceitos

As muitas citações não são meros artifícios do discurso, mas servem de reforço para acentuar como Mascaro deixa claro o desdém pelo sagrado. A narrativa carrega todas as implicâncias genéricas existentes contra a religião – a evangélica em especial. Em “Divino Amor” tudo é brega (com todos os preconceitos embutidos na palavra) com seus neons, palavreado, vestimentas, ritos e cantos. Menos mal que todas as religiões têm componentes ritualísticos, pictóricos e discursivos considerados bregas – o que alivia um pouco a barra do diretor.

Entretanto, não há desculpas para piadas de mau gosto como a do cachorro chamado Isaque que recebe elogios da dona pelo ato de virilidade. Leviandade irresistível, mas ofensiva (e dispensável) com um famoso personagem bíblico. Ou o excesso de sexo (em geral, inusitado, como aprecia o diretor). É muito sexo para um filme sobre a fé e chamado “Divino Amor”.

Há diversas questões aqui. A primeira, é que não se trata de moralismo, mas de bom senso. Precisa a cena de sexo na escada? Precisa a exposição gratuita da região pubiana da protagonista Joana (e por tanto tempo?), assim como os genitais do marido? Ou das variações nas posições sexuais feito filmes pornôs? O que isso tudo contribui para o filme? Um espectador que veja pouco cinema nacional (e há muitos) certamente terá a tese dele confirmada de que cinema brasileiro só tem sexo.

Pensando em público, a priori, um filme com esse título e tema atrairia atenção dos evangélicos (há muita gente esclarecida e menos conservadora e retrógrada nesse meio do que se imagina). Contudo, impossível levar um evangélico para ver um filme como “Divino Amor”. Em vez de debater ele vai se revoltar. E com razão.

Se até no mundo profano, casais ateus ou sem qualquer conexão com religiões ficam constrangidos com troca de parceiros, o que dirão os evangélicos sobre tal assunto? E feito em nome de Jesus! Alguém pode chamar o diretor de ousado, eu o taxaria de desrespeitoso.

A luz

E, em meio a tantos problemas, surge uma luz. Impossível não ressaltar a atuação de Dira Paes como a protagonista Joana. Há tempos sabemos das qualidades dessa atriz. Depois de, lentamente subir inúmeros degraus, em “Divino Amor” ela alcança o status de grande atriz.  É assim que deveríamos nos referir a ela daqui em diante.

A postura, os gestos, as intenções das falas e o repertório de expressões saídos do lugar que só os talentosos que trabalharam e aperfeiçoaram o talento recebido fazem colocam Dira Paes, hoje, ao lado das melhores atrizes brasileiras.

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