“O Brasil não conhece o Brazil / o Brazil não conhece o Brasil(…)”
Como já adiantou Elis Regina na década de setenta com a canção "Querelas do Brasil", as várias realidades pelas quais é constituído nosso país são praticamente desconhecidas de grande parte da população. Não me refiro somente à visão deturpada que o resto do mundo tem de nós, mas também, e principalmente, a imagem equivocada que o próprio brasileiro, mais especificamente o morador do sudeste e do sul, tem do Brasil. Quem mora abaixo do Trópico de Capricórnio acredita que vive a única realidade do país e projeta nas outras regiões uma imagem unificada que está longe de existir.
A extensa faixa de terra dividida em 28 unidades federativas comporta uma diversidade não só cultural, mas também uma discrepância social e uma estratificação econômica evidente. Em cada canto do Brasil se vive de uma forma, com seus costumes, traços característicos e visões de mundo próprios. Parece até que se lida com vários países dentro de um só. A noção de educação, higiene, cultura, arte, justiça, medo, liberdade, política e até de felicidade é diferenciada. Até a língua, que teoricamente serviria como delimitador da identidade de uma nação, ganha variadas expressões dialéticas nos extremos do território brasileiro.
Pude perceber essa multiplicidade na semana passada, quando estive no Maranhão, passeando desde o extremo sul do estado, na cidade de Estreito, até São Luis, capital e último município do norte maranhense. Um dos estados mais pobres do país esconde em seus recônditos cidadelas que serpeiteiam a rodovia federal que serve de gênese dos aglomerados urbanos que se multiplicam a cada quilômetro rodado: a Belém-Brasília.
A capital, que tem cara do interior que conhecemos, esbanja descaso: a ausência do Estado na urbe é explícita e vergonhosa. A degradação do município litorâneo e secular, que devia, portanto, abrigar elementos turísticos e de preservação de sua história, vê-se nas ruas esburacadas, nas calçadas depredadas, nos paralelepípedos soltos e quebrados das ladeiras do Centro Histórico, na sujeira de praias invadidas pelo esgoto a céu aberto, entre outras consequências da falta de consciência cultural e civil dos culpados, que não ouso, pretensamente, apontar como sendo a população, o governo do Estado ou a própria cultura brasileira.
Já no interior, a situação é um pouco mais crítica: casebres de pau-a-pique e barracas de bambu recobertas por telhados de palha dividem ruas de terra inundadas por poças d'água recém chovidas. Nas cercas de arame farpado improvisados varais são o sinal de que as pequenas propriedades acabam para dar lugar a outras. No interior das pequeninas residências, por vezes só uma rede, uma cadeira de plástico e um chão batido de terra revelam a pobreza lamentável que se esconde no interior do país.
A alegria com que assistem o vai-e-vem dos caminhões que carregam o Brasil em suas costas, atravessando verticalmente o território, é de encher os olhos. Se têm outros afazeres, deixam-nos para dar atenção a vida que os atravessa e os leva a imaginar o que seria uma vida longe da pobreza e do esquecimento. É uma contemplação mútua e consciente: deles, que muitas vezes nunca saíram da secura daquela região – e também acabam se tornando secos para a vida; e dos transeuntes motorizados, que acabam percebendo, seja imediatamente ou após um tempo de assimilação das imagens que viram, que reclamam com a barriga cheia, que têm aqui uma vida privilegiada e que, por mais que insista, não conheciam o Brasil de verdade.
Um país esquecido clama silenciosamente todos os dias por atenção. Sem condições dignas de existência há ali, no entanto, um lar. Depois das andanças pelo sertão nordestino, a máxima “a felicidade é relativa” torna-se mais real. Quem disse que aqueles milhões de pessoas que simplesmente deixam a vida passar são infelizes? Será que seu conceito de uma vida bem vivida não é simplesmente estar ali, junto das pessoas que se ama, sobrevivendo? Claramente buscam uma realidade que os torne mais humanos, mas a grande maioria quer mudar sua terra, e não se mudar dela. A inquietude e a busca eterna por desafios que faz com que jovens deixem a pobreza e o esquecimento desses locais é minoria. Talvez grande parte perdeu as esperanças após anos e anos de luta em vão por reconhecimento. Ou simplesmente se acostumaram a ser quem são.
O que mais me chamou atenção no serpentear das estradas maranhenses e no encadeamento eterno das cidadelas foi uma menina que, apoiada num tronco velho de uma árvore que um dia ali existiu, estudava. Era como se nada daquilo fizesse sentido. Rodeada por papéis alvos que constrastavam com o marrom escuro da paisagem ressecada e de sua pele cor de jambo, a menina descalça parecia viajar num mundo distante e alheio ao seu. Um mundo do qual poderia fazer parte, mas que tinha consciência que seria difícil. Concentrava-se como se aquele toco de lápis que teimava em existir fosse sua arma contra um mundo que lhe havia permitido a existência, mas que custava a lhe proporcionar condições para tal. Emocionante. Ainda bem que sempre existem as exceções…
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