Esse Dia da Consciência Negra datado em 20 de novembro deu o que pensar… assim como o Dia do Índio… ou o Dia Internacional da Mulher… ou o Dia do Artista… ou o dia do Professor… ou todos os outros dias comemorativos – porque, se essas datações não existissem, é como se nos esquecêssemos, ou não pudéssemos nos lembrar ou, pior, se não soubéssemos, não tivéssemos consciência que todos esses objetos de celebrações existem todos os dias, se constituem realidades e pertencimentos na imensa teia da vida.
Essas datações servem para lembrar-nos as nossas obscuridades, as nossas ignorâncias, as nossas desigualdades, as nossas intolerâncias, o nosso ainda rastejante desenvolvimento humano e espiritual, porque, infelizmente, ainda não dá pra dizer que estamos caminhando – mesmo tropegamente, num amplo sentido humanista, nesse país varonil e constrangedor.
Autodeclaro, pra ficar bem explícito, que sou um homem de pele branca escrevendo sobre algumas coisas que não vivi em minha própria história, nem senti em minha própria pele ou carne – mas que, muitas outras, vivi, sim, e vivo, sim – ainda, e que, por isso, posso dizer que me coloco por uma humanidade que nos liga e identifica, humanidade que sinto em meu próprio coração e em minha própria alma, este ânima que nos anima e justifica. Assim, continuo, também, me autodeclarando, além de homem branco de pele queimada de sol e curtida de vento e vida, um ser originado no cosmo cujo gênero é humano, demasiado humano, como diria Nietzsche.
Valorizando, então, que o mote deste texto é o Dia da Consciência Negra, volto a ele, lembrando que foi instituído em honra de… e por inspiração de Zumbi dos Palmares que, em 1695, se colocou como um dos maiores líderes negros do Brasil, lutando pela libertação do povo negro contra o sistema escravista da época. E em honra, também, de todo o povo negro que ainda hoje luta pra fazer valer a chamada “abolição da escravatura”, pra que seja uma abolição de fato e não só de direito, desmascarando e dissolvendo a dissimulação e o cinismo em que nossa sociedade está mergulhada fingindo não ver e, pior, fingindo não fazer aquilo que está profundamente impregnado em nossa sociedade e em nossa cultura: o racismo.
Do complexo de superioridade…
O racismo não é outra coisa senão um transtorno mental, um complexo de superioridade com características eugênicas, arianas, que justifica a prática do preconceito e da discriminação com base em equivocadíssimas percepções psicológicas e sociais que alucinam existir diferenças biológicas e, mesmo, espirituais, entre pessoas e povos, que tornam uns e umas melhores que outros e outras. Com isso, justificando a instituição de práticas sociais, crenças religiosas, mecanismos trabalhistas e sistemas políticos e culturais – entre muitos outros aparatos, que consideram que os brancos são superiores não só aos negros, mas também aos amarelos, marrons, vermelhos e outras cores possíveis à pele humana, “detentores de um poder divino” que, por si só, definiria quem deve mandar e quem deve obedecer, assim como ter a prerrogativa de todas as benesses e privilégios da graça e da bem aventurança.
Por conta dessa “designação divina”, a brancura se torna o padrão normativo, mesmo num país de maioria negra como o nosso – o que vai de encontro às falácias históricas, políticas e religiosas que tentam legitimar atrocidades como o tráfico de escravos da África pra cá e outros lugares, assim como um agressivo apartamento (apartheid) cultural, social, educacional, profissional e econômico, em que a exclusão, por um lado, e a exploração de outro, buscam a manutenção de privilégios sustentados num falso e nefasto supremacismo.
Institucionalmente estruturado e sistemicamente exercido, essa falsa superioridade branca navega na onda de séculos e séculos de propaganda enganosa, Nesse Brasil mestiço e miscigenado, em que mais da metade da sua população é parda e negra, da mesma forma que mais da metade da sua população é constituída por mulheres, me causa estranhamento que, por uma lado, são os brancos que querem fazer valer o seu modelo e padrão, da mesma forma que, por outros lado, são os machos que querem fazer valer a sua lei e a sua ordem.
Não defendo aqui que sejam os negros, pardos e mulheres que deem a voz de comando, pois não considero que nenhuma maioria, necessariamente, seja a voz de Deus, ou da verdade, ou a razão, o que, também, não é privilégio de nenhuma minoria, tal como pleiteava Platão, em sua República, e tal como como pleiteavam uns desvairados em sua republiqueta.
Convenhamos: creio que podemos pactuar a nossa sociedade em melhores termos do que os vigentes…
Isso tudo, porém, é mais ainda. Toda essa coisa supremacista tem, no Brasil, raízes antigas, seja por todas as dores e rancores que faziam gemer os cascos dos navios negreiros…
…seja relembrando que, quando aqui chegou, a “civilização” portuguesa gastou preciosos tutano e tempo a discutir se os índios que aqui habitavam, e ainda habitam, eram seres humanos ou animais – e que, na dúvida, optou por tratá-los como animais…
…seja olhando com os olhos de quem sofre a misoginia – traduzida por repulsa, desprezo ou ódio contra as mulheres, centrada em uma visão sexista, que coloca o homem como superior à mulher, que resulta em uma falsa ideia de direitos dele sobre ela…
…seja por toda a desumanização que sente quem sente a homofobia, na forma de repulsa ou preconceito contra quem vive alguma condição homossexual…
…que faz com que, dessa distorção, cheguemos à misandria – sentimento de raiva ou aversão da mulher em relação ao homem…
…e que daí cheguemos, ainda, à misantropia – repulsa e aversão ao ser humano ou à humanidade, que mistura os vários preconceitos, ou transtornos, já citados.
…ao complexo de inferioridade
O complexo de superioridade de todo indivíduo, base de todas as mazelas aqui citadas, é, segundo Freud, profundamente ligado ao seu próprio complexo de inferioridade. Ele sustentava que os complexos de superioridade e inferioridade são frequentemente encontrados juntos como expressões diferentes da mesma patologia, e podem coexistir num mesmo indivíduo. Para ele, o complexo de superioridade é uma situação que se cria quando uma pessoa supercompensa o complexo de inferioridade que sente, uma maneira de encobrir seus sentimentos de fracasso ou falha.
Fácil de ser percebido em pessoas de nosso convívio ou da vida pública, na forma de arrogância, prepotência, insolência ou agressividade, esse complexo é um pouco mais difícil de identificar em nós mesmos, pois nossa falsa humildade – assim como o próprio complexo de superioridade, as encobre. Seus portadores geralmente projetam seus sentimentos de inferioridade nos outros que entendem como seus inferiores, encarando-os como feios, ou estúpidos, ou gordos, ou bicha (antigo, né?), ou comunistas, ou fascistas, entre muitas outras designações ou xingamentos que os façam se sentir melhores, ou superiores.
O complexo de superioridade, psicanaliticamente falando, se comunica com o narcisismo, que é o amor exacerbado de um indivíduo por si próprio ou por sua própria imagem, seu falso eu. O termo “narcisismo” descreve uma forma de relação com a vida centrada egoicamente na própria pessoa, quando a sua libido, sua energia, está exacerbadamente direcionada para si mesmo, e cujo centro do universo é o seu próprio umbigo.
Outro olhar
Vai daí, então, ou, entretanto, como já o disse Caetano, “de perto ninguém é normal”. E que, assim, de umbigo em umbigo, temos bilhões de umbigos no mundo, inclusive o meu, muito bem situado em mim e eu nele… e que, consequentemente, nos harmonizamos em pensar o que já foi dito antes, e que vou repetir: convenhamos, creio que podemos pactuar a nossa sociedade em melhores termos do que os vigentes…
Isso quer dizer que podemos desenvolver um outro olhar – mais inclusivo, tolerante, compreensivo, pacífico, humanista… que possa acolher a perspectiva de que, como seres humanos, como indivíduos, somos seres únicos, singulares, apenas uma espécie de elemento constituinte de uma biodiversidade cosmopolita, planetária, exemplar cósmico de um projeto espiritual universal, que aqui estamos tendo a nossa oportunidade de evolução – para a qual contamos com a possibilidade do livre-arbítrio e da autorrealização nas formas múltiplas que concede o discernimento e a liberdade de ser e se expressar de cada um, seja nas suas etnias, linguagem e costumes, seja nos seus valores ou modos de ser na vida
Ajuntando um pouco de iluminismo nesse olhar, podemos dispor à nossa razão – enquanto fonte de autoridade e legitimidade aos nossos anseios – a possibilidade de aprendermos mais e de discernirmos melhor quem é o nosso real inimigo, que não é o outro nem qualquer um que seja ou pense diferente de nós. Só assim poderemos sair da tutelagem que nós mesmo nos impomos, que nos escraviza e nos subjuga ao mais subterrâneo e inconsciente que possamos conceber. Nos livrando de extremismos, ideologias e sectarismos aprisionantes e nos conduzindo a uma condição mais favorável de evoluir e de desfrutar os tais momentos felizes que dizem que existem. Quando poderemos experimentar como é que é uma consciência que acolha todas as cores e todos os seres como iguais e companheiros de jornada, cada qual com seu propósito e sua missão. Dignos de respeito e consideração.
Como diria Freud: uma fantasia. Ou alucinação do desejo.
Como lidar com tudo isso? Psicanálise, terapia, autoconhecimento – algo assim.
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VAGNER COUTO, psicanalista, realiza seu trabalho terapêutico tendo por base uma profunda escuta empática. Não ortodoxo ou sectário, tem um olhar pluralista em sua prática clínica. Assessor acadêmico do CEFAS, Escola de Psicanálise, já criou e coordenou a realização de mais de 100 eventos psicanalíticos e de saúde mental junto às principais instituições destas áreas no país, tendo trabalhado com pessoas como José Ângelo Gaiarsa, Marta Suplicy, Rubem Alves, Paulo Gaudêncio, Vera Lamanno e Roosevelt Cassorla. Tem profunda vivência em práticas holísticas de saúde mental em instituições como Brahma Kumaris, Fundação Peirópolis e Laboratório de Práticas Dialógicas. Tem 27 anos de experiência como conselheiro em instituição dedicada ao autoconhecimento, à expansão da consciência e à espiritualidade. É autor dos livros “Admirável momento novo” e “A estrela da manhã”. Jardineiro e poeta, ama plantar árvores e cuidar delas.
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