No meio de tantas demandas dessa época, confesso que tenho desejado certas coisas em minha vida que me faz reflexivo… – enquanto faço um percurso por possibilidades de mim próprio, em nada, talvez, diferentes das de cada pessoa que habite essa época e esse lugar.
Viver não tem sido tão fácil, confesso, no meio de tantos movimentos humanos, políticos, sociais, culturais e espirituais que têm acontecido nesse nosso Brasil varonil e constrangedor, por demais agressivo, preconceituoso e doentio pro meu gosto.
Viver também não tem sido tão fácil na dimensão mais ampla desse planeta tão carente de respeito e consideração por parte dessa humanidade (da qual sou parte) tão necessitada de evolução, que precisa tanto de mais compreensão, tolerância e virtudes várias… – mas declaro, convictamente, que não tenho nenhum outro desejo ou plano pra minha vida senão o de continuar vivo e ficar bem – em tudo e por tudo.
Desfranciscado… – ou: como sobreviver ao mal tempo
Nessa época tão obscura e tacanha, em que os raivosos e donos da verdade abandonaram sua discrição e recato, não tem sido tão fácil ser instrumento da paz, por mais e mais que eu deseje e me esforce, pois a paz não é artigo de prateleira. E ainda não me é tão espontâneo e natural levar amor onde há o ódio, a raiva e a estupidez, e perdoar a quem ofende e ultraja sem rigor.
Não tem sido fácil fazer prevalecer a união ante tantas diferenças e divergências que, ultimamente, têm aparecido mais – talvez por conta de uma luz misteriosa que vem revelando as coisas que sempre estiveram por aqui… mostrando como realmente ainda somos.
São muitos os desencontros e decepções: quem são essas pessoas que eu achava que conhecia, a quem – muitas, eu chamava (chamo) de amigas? Particularmente frente a situações em que sinto ter havido tantos erros crassos e espantosos, e diante de tudo que tenho tido notícias, nesse país e no círculo que frequento, do que algumas pessoas ainda estão fazendo em seu desvario, não vejo como e nem porque eu querer lhes levar a minha compreensão da lei ou a minha verdade – que não é humilde, ainda, e nem mansa, ou, talvez, mesmo verdade.
Frente a tantas dúvidas em mim emergidas, desejo que eu não esmoreça em minha fé que, com a benevolência da força superior, venho sustentando. Assim, não é tão fácil levar esperança e alegria ao sertão de meus desejos, ou meu olhar, ou meu consolo, aos frustrados e frustradas que não sabem se conter diante do que a vida lhes trouxe, mesmo que eu não desatine em desespero e tristeza.
Não tem sido fácil conectar a luz ante a treva, nem consolar quem ainda não sei consolar, e compreender quem ainda não sei compreender, que, até então, tem se mostrado tão incompreensível por tudo que defende, em nome de valores ou prioridades que não condizem com os que – eu compreendo assim – me foram ensinados, considerando o que, realmente, acaba ficando em primeiro plano.
Darei o que, assim, diante de tudo que recebi e senti – mas não queria? Perdoar como, e quem sou eu pra isso, e com quais recursos – àqueles que doeram no mais fundo de mim? Àqueles com quem me desencontrei e nos confrontamos quando eu achava que estávamos no mesmo caminho ou que éramos da mesma tribo? O que, de alguma forma, ainda estamos e somos.
Assim, não sei se saberei simplesmente relevar a tudo de que falo, não sei, tamanho é meu espanto em perceber o quanto compreendemos diferente, o quanto eu talvez estivesse enganado no que eu acreditava ser o certo e o verdadeiro. Mas, de todo coração, em nome da coerência com o caminho em que estou – mesmo não relevando, buscarei elevar.
Desejo, então, dias melhores pra todos nós, e que não nos percamos do caminho e nem uns dos outros. Impossibilitado de mudar qualquer pessoa que não seja eu, pois isso não pertence ao caminho que escolhi, recolho-me à escuta possível e me proponho a trabalharmos juntos pra que aprendamos a pensar, a enxergar e a restaurar o que seja necessário. Enquanto isso, também desejo o cumprimento dos bons presságios que vêm da vida eterna. Temos tempo!
No mais, alerto quanto à certa subserviência, indolência e leniência a que somos sujeitos a respeito do que está acontecendo, a respeito das enganações de alguns setores da indústria cultural e a respeito da força que mobiliza esses setores, permanentemente procurando nos iludir quanto ao modo de vida e ao comportamento que ela reiteradamente nos oferece como o real e necessário, promovendo um bonito discurso de conexão, interatividade e compartilhamento…- mas que, absurda e contraditoriamente, dá pau a toda hora, tanto on-line quanto ao vivo e em tempo real – conforme venho tratando.
A par disso tudo, e reconhecendo as insistentes arrogância e rusticidade que ainda me permeiam, desejo tudo o que favoreça pra considerar que a dignidade é em mim, e que nos pertencemos. E desejo tudo aquilo que aprouver à própria vida, mas proponho a ela o meu relicário de desejos: mais discernimento, tolerância e compaixão, e mais lugar pra guardar tudo isso. Desejando, também, além do que me seja dado, tudo aquilo que eu possa conquistar ou adquirir, inclusive da categoria das vulgaridades e superfluidades essenciais, como o prazer e o bem estar – eu que me vejo, desculpavelmente, sem condições de cumprir a vida minimalista de um monge, mesmo tendo, subliminarmente, mencionado Francisco de Assis… que, agora, explicitamente, o evoco com a sua palavra verdadeira pra cobrir tudo o que seja necessário do que eu tenha dito, palavra que, acredito, propõe o jeito real de sobreviver ao mau tempo – e ao mal desse tempo – palavra que também se configura como o meu mais eloquente desejo.
Desejamos o que não temos. Desejamos o que não conhecemos. Desejamos, ainda, o que talvez não possamos. O que torna tudo isso um suplício.
Tântalo e o objeto do desejo
A moda, a tecnologia, as redes sociais, a propaganda e outros aparatos excitam continuamente o sujeito devido à proximidade das imagens do objeto desejante, e paradoxalmente promove o distanciamento desse objeto do desejo, tal qual a representação do mito sobre o suplício de Tântalo. Ousando testar a omnisciência dos deuses – sabedores e conhecedores de tudo, Tântalo roubou os manjares divinos, e por isso foi condenado à sede e à fome – mesmo tendo água e comida ao seu alcance: ao recolher água em suas mãos, ela escorria por entre seus dedos e, quando vinha a colher os frutos no pomar, os ramos moviam-se pra longe de seu alcance. A expressão “suplício de Tântalo”, assim, se refere ao sofrimento daquele que deseja algo aparentemente próximo, acessível, bastando clicar, ou tocar, porém, em verdade, inalcançável. É este suplício que boa parte de nós, humanidade, estamos vivendo compulsivamente.
Buda e o sofrimento causado pelo desejo
Daí vem Buda dizendo que esse suplício, esse sofrimento, é a natural decorrência do desejo em todas as suas formas. Quando alguém deseja algo, diz ele, e não se obtém, a frustração gera o sofrimento (claro, sabemos!), assim como quando se obtém o que se deseja há o desejo de manter o objeto do desejo (sabemos, também). O desejo causa sofrimento pelo apego’, pela sede de prazeres físicos, sensoriais, pela ânsia (ansiedade…) que não pode ser plenamente saciada. O desejo de ter ou ser faz com que nos apeguemos à falsa ideia de um “eu”, ou “ego”, que possui grande apego por felicidade, ganhos, elogios, fama e prazeres – nem sempre conseguindo tê-los ou mantê-los.
A base dos ensinamentos do Budismo é o sofrimento e a sua consequente extinção. Pra Buda, o desejo deve ser purificado de forma a se eliminar o sofrimento. Na sua doutrina, Buda apresenta As Quatro Nobres Verdades, que afirmam que a natureza do sofrimento é não obter o que se deseja. A origem do sofrimento é o apego ao desejo acompanhado pela cobiça e pelo prazer – buscando aqui e ali os prazeres sensuais, o desejo por ser/existir, o desejo por não ser/existir… A cessação do sofrimento é o desaparecimento do desejo, o abandono e renúncia a ele… – o que ainda não desejo quanto a alguns dos meus desejos. E coloca, por fim, que o caminho pra cessação do sofrimento é o Nobre Caminho Óctuplo: entendimento correto, pensamento correto, linguagem correta, ação correta, modo de vida correto, esforço correto, atenção plena correta, concentração correta. Entendeu? É assim!
Pra Buda, o não há nada de errado em ter prazer ou desejos. O erro é nos subjugarmos a eles através do apego/aversão. Por isso ele propõe o caminho do meio: não irmos nem a um extremo, nem a outro. Trilhar o caminho do meio faz surgir condições que conduzem a minimizar ou dar um fim ao sofrimento.
Freud explica: o desejo e seu objeto
Já pra Freud, mentor da psicanálise, desejos visam mudar o mundo, representando-o como desejam que o mundo deveria ser. Nesse contexto, o objeto do desejo refere-se a tudo aquilo que vem satisfazer a um impulso, muitas vezes inconsciente. O objeto pode ser uma pessoa ou parte dessa pessoa, uma entidade, um ideal ou um celular (que não existia no tempo dele) – e pode ser real ou imaginário, sempre mobilizando a busca da satisfação e do preenchimento do vazio primário.
Pra psicanálise, o desejo tem duas dimensões básicas: por um lado, é aquilo que nos movimenta em direção a algo que elegemos como necessário. Que, nem sempre, se mostra claramente e que, como tudo que é cifrado, ambíguo ou obscuro, exige interpretação – por sua manifestação nos lapsos, nos sintomas e na fantasia de cada um. Por outro lado, é a volta a uma experiência que um dia se formou, em direção a um objeto que tem a ver com pulsões infantis que ainda pulsam em nós. Tal como um movimento rumo à marca psíquica deixada pela vivência da satisfação primeira que acalmou uma necessidade do bebê.
O desejo, aqui, não é a mesma coisa que o querer, pois o querer é um ato da inteligência e da razão, e o desejar é um ato quase que de instinto, de sentimento, que nasce do inconsciente, de um lugar onde experiências passadas, em geral, muito antigas e esquecidas, continuam atuando dentro de nós. Nesse contexto, temos aqui uma concepção do desejo como um movimento psíquico em direção à identidade. Por isso, boa parte do que se faz numa análise é essa busca do reencontro da pessoa com o seu desejo original e com o seu verdadeiro eu, sem os falsos valores ou as exigências morais impostos pela sociedade ou que ela própria se impôs, cerceando um encontro sincero consigo mesmo e com o real sentido da sua vida.
Como lidar com tudo isso? Psicanálise, terapia, autoconhecimento – algo assim.
Pra falar com o autor ou pra enviar seu comentário sobre esse texto, use: 19 99760 0201 [zap] ou vagnercouto@gmail.com
VAGNER COUTO, psicanalista, realiza seu trabalho terapêutico tendo por base uma profunda escuta empática. Não ortodoxo ou sectário, tem um olhar pluralista em sua prática clínica. Assessor acadêmico do CEFAS, Escola de Psicanálise, já criou e coordenou a realização de mais de 100 eventos psicanalíticos e de saúde mental junto às principais instituições destas áreas no país, tendo trabalhado com pessoas como José Ângelo Gaiarsa, Marta Suplicy, Rubem Alves, Paulo Gaudêncio, Vera Lamanno e Roosevelt Cassorla. Tem profunda vivência em práticas holísticas de saúde mental em instituições como Brahma Kumaris, Fundação Peirópolis e Laboratório de Práticas Dialógicas. Tem 27 anos de experiência como conselheiro em instituição dedicada ao autoconhecimento, à expansão da consciência e à espiritualidade. É autor dos livros “Admirável momento novo” e “A estrela da manhã”. Jardineiro e poeta, ama plantar árvores e cuidar delas.
Newsletter:
© 2010-2025 Todos os direitos reservados - por Ideia74