Cronicando

“O Belo Danúbio Azul”

por Maria Angelica
Publicado em 21 de abril de 2020

Como em todos os amanheceres, praticamente acordo com o celular grudado em minha mão. Meu “Bom dia” é pra ele e a primeira coisa que faço é ver se tenho alguma mensagem. Abro uma de minha prima Claudete com seu humor básico e certeiro: “Nunca pensei que chegaria um dia quando fazer compras de supermercado fosse se tornar um baita programa turístico e cultural! E de máscara! Um dia esperado ansiosamente durante a semana!” Solto uma gargalhada. Fico imaginando a cena, viajo a esse lugar que se transformou em um dos passeios mais esperados. Tenho até uma trilha sonora, a Valsa “O Belo Danúbio Azul”, de Johann Strauss II, o Jr. Assim que abro minha porta para a tão desejada liberdade iniciam os acordes mais lentos, assim um caminhar passo a passo, devagar mesmo para aproveitar o momento sob o sol poético de outono; um céu azul claro, poucas nuvens. O próximo movimento, acelerado, culmina com a chegada ao supermercado, ao mercadinho, que seja. Direciono minhas mãos ao meu par, o carrinho de compras. Firmes, como se fôssemos um só, em um rodopio rápido saímos a valsear pelos corredores, que alegria!

Param, ram, ram, ram, tam, tam…

Nossos corpos dançando lentos mais rápidos mais graciosos às vezes descompassando o passo logo acertando as voltas em meio a tantas ofertas de felicidades Nesse palco cruzamos com outros bailarinos ao som de Strauss o Jr Giramos um ao redor do outro educadamente mantendo a distância de segurança Não ocupamos o mesmo espaço como manda a lei da física E vamos preenchendo o vazio das nossas vidas com gostosuras doçuras hortifrutigranjeiros misturas diversas químicas para limpar nosso pequeno mundo Um dois três me vem à mente o …param ram ram ram tam tam… Giro em torno de mim mesma pendendo a cabeça atrás e o braço direito estendido enquanto me seguro no meu par com o esquerdo de pronto pego rolos de papel higiênico …param ram ram ram tam tam… Perco o compasso novamente retomo quando entram suaves violinos Não entendo nada de música não diferencio o ré do si nem sei dançar além do dois pra lá dois pra cá e entre imperceptíveis tropeços sigo esse passeio cultural movido pelo instinto Feliz vou valseando nesse baile antigo de máscaras alternando piruetas rápidas …tam tam tam tam tammm… Ouço o rapaz do caixa dizer “próximo” sou eu Na esteira das embalagens cambaleantes umas por sobre as outras o mascarado desconhecido registra os códigos de barras enquanto minha cabeça divaga no ritmo …tam tam tam tam tammm… Nossa a conta foi maior que o esperado nada que uma barra de chocolate não amenize Ufa não há como pontuar esse momento vivido até aqui …tam nam nam tam nam nam… Como sou limitada na transcrição das onomatopeias mas sigamos Eu e meu par nos despedimos ele fica na fila para um próximo valsar Sigo cantarolando baixinho sozinha carregada de sacolas por algumas quadras De repente bruscamente Abre parágrafo …Pramm tammm… fecho a porta ponto final.

 

Sem trilha sonora, sem máscara, solitária em meu casulo, olho os punhados de produtos misturados, que preguiça arrumar tudo isso, higienizar cada pacote. Silêncio! O rei da valsa, Johann Strauss II, o Jr, morreu em 1899, em Viena, Áustria, aos 73 anos, de pneumonia. O ar me falta por instantes, sinto um aperto no peito. Um vazio profundo. Somos tal qual lagarta azul à espera da metamorfose a nos tornar, uma vez mais, em frágil borboleta e seu brevíssimo voo de vida.

 

P.S.: Atendendo a uma sugestão do meu irmão Carlos, que tal ouvir e dançar “O Belo Danúbio Azul” em sua casa, em seu apartamento? Só vai fazer bem. Ótima semana a todos!

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