Cinema Literal

O arrebatador melodrama de Karim Aïnouz

por João Nunes
Publicado em 25 de novembro de 2019

Este texto sobre “A Vida Invisível” (Brasil/Alemanha, 2019), do cearense Karim Aïnouz, candidato brasileiro a uma vaga no Oscar de filme internacional, também poderia ser chamado de “a atração humana pelo mal”. Ou o seu reverso: “a capacidade humana de amar”.

No filme, enquanto os homens se digladiam para perpetuar através do gene o poder mesquinho de macho alfa, gastam energias para proteger apenas a si próprios e objetivam ser donos do irrelevante mundo pensado unicamente para eles mesmos, as mulheres estabelecem laços e cultivam sonhos com base no amor, sentimento entendido por elas como o único capaz de trazer algum sentido à vida.

A premissa soa, em princípio, maniqueísta, pois coloca em confronto homens (o mal) e mulheres (o bem), como se não fossem igualmente humanos e sujeitos às paixões próprias dos humanos. Para fugir desse modo raso de olhar mundo, Karim remete ao romance “A Vida Invisível de Eurídice Gusmão”, da recifense Martha Batalha, e desenha o retrato de um tempo: os melancólicos anos 1950, nos quais a união entre homem e mulher era, no geral, campo de batalha onde o masculino (e a necessidade constante de reafirmação da virilidade) dava (todas) as cartas.

Quem conhece a obra de Karim sabe que ele se pavimenta a partir de temas espinhosos. Para citar dois exemplos, no magnífico “Madame Satã” (2002), com vigor e imponência ele concede a palavra a um negro gay dos anos 1930; em “O Céu de  Suely” (2006), mulher que se sente oprimida em um lugarejo nordestino se liberta e, sozinha, viaja para o lugar mais longe possível que ela encontrou – no caso, Porto Alegre.

Em “A Vida Invisível”, o cineasta cearense faz um libelo em favor da mulher. Com um detalhe: jamais cai no panfleto. Ao contrário, o diretor trabalha sobre o belo roteiro de Murilo Hauser com tamanha delicadeza que, pela arte, transforma tudo aquilo que, no filme, é áspero, pedregoso e amargo em deleite – daí o adjetivo arrebatador do título.

Prazer, entre outros, de assistir à performance homogênea de um elenco primoroso, do qual cito, apenas para exemplificar, os atores centrais: as protagonistas Carol Duarte e Julia Sockler, passando por Maria Manoella, atriz maravilhosa que aproveita um pequeno papel para brilhar intensamente, os dois principais personagens homens (Gregório Duvivier e o português António Fonseca), a também portuguesa Flávia Gusmão e a brasileira Bárbara Santos.

Destaque também para a belíssima trilha sonora do alemão Benedickt Schiefer composta no tom correto sem acentuar o dramático, porque este fala por si só, e para a atmosfera (alma de um filme) criada pelo diretor ao nos transportar para o Rio de Janeiro de cerca de 70 anos atrás e que em alguns momentos beira filme de terror. “Estou com medo”, declara Eurídice logo depois de saber que estava grávida de um bebê indesejado.

E Karim ainda acrescenta uma cereja ao bolo. Ninguém que conhece a arte da interpretação se surpreenderia, a estas alturas, com a performance de Fernanda Montenegro. Pois esta mulher iluminada tem no pouco tempo disponível uma entrada fulgurante – prêmio que ela se dá, e generosamente compartilha com o espectador, neste 2019 no qual completou 90 anos.

O filme

Estamos no pós-guerra, final dos anos 1940, começo dos 1950, tempo simbólico de reconstrução. Entretanto, o conflito de “A Vida Invisível’’ se dá como consequência do regime patriarcal e todas as restrições comportamentais próprias, a rigidez dos costumes e a rudeza do homem no trato com a mulher.

Guida, filha de um conservador casal português, se mete em uma aventura, retorna grávida à casa e é expulsa sem direito à indulgência. Por conta disso, se separa da querida irmã Eurídice, exímia pianista que sonha estudar em Viena, apesar da oposição do pai e do marido. O inferno das duas irmãs, que poderia ser o mundo hostil e suas armadilhas, está dentro de casa, o suposto lugar da união e do afeto.

No citado “Madame Satã”, Karim exercitou linguagem criando com a câmera um ambiente claustrofóbico. Agora, ele evoca novamente à simbólica falta de ar e de espaço das personagens protagonistas, mas, em contraposição, trabalha com planos mais amplos, especialmente quando quer acentuar o cenário da então capital brasileira, e recorre a uma narrativa mais clássica, adequada a uma história épica que cobre várias décadas.

A grande virtude de “A Vida Invisível” é a capacidade do diretor de estabelecer uma uniformidade em cada um dos elementos fílmicos: a concepção, o roteiro, as interpretações, a música, o lugar da câmera, a edição, a direção de arte, a fotografia.

Outro mérito é a maneira sóbria como Karim conduz o melodrama. A contenção, longe de parecer fria e distante, é um acerto. Não é preciso realçar nada; a descrição acontece no tom absolutamente adequado de quem não pretende produzir emoções fáceis, mas trazer à luz um tema urgente capaz de suscitar reflexão sobre velho debate de interesse impressionantemente contemporâneo.

Tudo isto está em consonância com um projeto que faz do longa o trabalho mais bem elaborado e acabado de Karim Aïnouz, hoje, o melhor cineasta brasileiro, dono de uma obra profícua e singular.

Oscar

Seria uma pena se “A Vida Invisível” não fosse indicado ao Oscar de 2020 na categoria filme internacional. Desde “Central do Brasil” (Walter Salles, 1999) um filme brasileiro não reunia tantas credenciais. Ganhador da mostra Um Certo Olhar, em maio, no Festival de Cannes, o filme tem conquistado prêmios e indicações importantes.  O mais recente foi a indicação ao Independent Spirit Awards, espécie de termômetro para o Oscar.

O anúncio dos dez pré-indicados da Academia de Hollywood acontece no dia 16 de dezembro. São 93 países concorrendo às dez vagas. O anúncio dos cinco finalistas será no dia 13 de janeiro de 2020. A cerimônia do Oscar está marcada para 9 de fevereiro.

Veja a programação nos cinemas de Campinas.

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