Seus pés estão suspensos no ar e o corpo negro vai e volta em cima da caçamba verde. Temo que aquele homem franzino, porém músculos definidos, possa despencar dentro da lixeira pública. Acostumado a esse malabarismo cotidiano, ele se equilibra, toca com os pés o asfalto e traz em sua mão a refeição do dia? É algo vermelho. É um tomate? Uma maçã pequena? Não sei, estou a alguns metros, mas posso ver, em movimento, que ele vorazmente come o que não serve para nós. Caminhando na calçada, constrangida, tento desviar o olhar, ele me vê, sorri e, interrompendo a minha pressa, me cumprimenta, pergunta se tenho algum trocado pois tem fome. Bastante fome. Paro e antes de qualquer coisa resolvo conversar com essa pessoa invisível, não porque sou boazinha, não! Sim, porque me percebo invisível de uns tempos para cá e preciso de um minuto da atenção dele para voltar a ser gente.
– Meu nome? Maria.
– Nossa, é o nome da minha mãezinha, que já se foi. Eu vejo sempre a senhora por aqui.
– Eu moro no centro, respondo.
– Sim, vejo a senhora passar sempre nessa rua.
Ele me vê. Eu, não o via antes. Uma vergonha danada me acomete. A cena impensável para privilegiados, brancos, com endereço certo, dinheiro em conta: comer as sobras, podres, foi o que me levou a olhá-lo. A deplorável imagem real e desconfortante ao desejo estático por uma estética do belo…, se repete, se repete, se repete, se repete, se repete…
– Meu nome? Valdeci, com “V”. Sou de 72.
Nós dois mantemos uma certa distância, quer dizer, eu com medo dos perdigotos, apesar da máscara. Algo que não faz parte da rotina desamparada de Valdeci, sem proteção nenhuma, seguro pela lixeira.
– A rua é meu lugar, durante o dia cato lixo reciclável, latinhas, vou vivendo assim, minha irmã e meu cunhado, evangélicos, já tentaram me tirar da rua, fizeram de tudo, mas eu não consigo, sou dependente de crack, não tem jeito, já fiquei internado…
Valdeci dispara a falar como uma metralhadora. Eu escuto a explicação de que necessita de ajuda para comer e pagar a estadia na pensão, onde dorme.
– 30 reais.
E ali, por alguns minutos, Valdeci me proporciona um momento de pessoalidade ao me ver.

foto: César Fontenele
Essa é uma verdade atual e pretérita carregada de gerúndio…, simples assim! A história corriqueira, de quinze dias atrás, aflorou ao receber uma foto enviada pela minha amiga e também jornalista, Dani Lemos. É o começo do processo de uma arte moldada pelo artista, marido da Dani, César Fontenele. Ele está esculpindo a imagem de Irmã Dulce. Eu e três amigas, Maraísa, Sandra e Cristina, nos silenciamos diante da grandeza da obra impressionante dessa mulher considerada santa por muitos, para mim um ser fora da curva. Foi em 2003, em Salvador. Como gostaria de derrapar, sair dos trilhos igual a essa freirinha nascida em 1914, morta em 1992. Ela tinha 1,5 de altura e chegou a pesar 38 quilos. Ah, era uma gigante no amor e na determinação.

foto: OSID
As mãos do Cesinha moldam Irmã Dulce abraçada amorosamente a um menino negro, desses abandonados e invisíveis que ela abraçou durante seus 77 anos. As primeiras formas da peça personificaram para mim a figura de Valdeci. A santinha baiana, fisicamente frágil, dizia que a maior “miséria é a falta de amor entre os homens”. É verdade. Ao não enxergarmos o nosso semelhante, o seu desespero na escassez de uma existência indigna, nos tornamos indivíduos derrotados em nossa essência. No Brasil, a violência em diferentes aspectos é superlativa. No entanto, relativizamos o sofrimento, a morte em baciada. Assistir ao presidente da república, autoridade máxima do país, Jair Bolsonaro, ao lado do ministro interino da saúde, o general Eduardo Pazuello, minimizar as mais de 100 mil vidas perdidas para a Covid-19, como se fosse natural morrer desse mal, é algo inacreditável, inaceitável. Não custa nada pensar um pouquinho no fato de que essas pessoas que morreram deixaram desestruturadas vidas conectadas a elas, dependentes afetiva e financeiramente.


A doença mata os mais pobres, em sua totalidade, negros; indígenas; velhos; profissionais da saúde… Uma catástrofe! São rupturas abruptas, traumas irreversíveis. Vivemos em diferentes bolhas sociais como a do picadeiro do circo político montado nos palácios governamentais, a pior, na minha opinião, pois essa engrenagem deveria funcionar a favor dos necessitados. A dor alheia é banalizada no velho discurso do “é assim mesmo, é o fim de todos”. E, desta maneira, a periferia segue vivendo à beira do esgoto; pessoas morrem antes da hora no turbilhão dessas mazelas; açoitada por feitores “modernos” por causa da raça, da cor; da pobreza.
Carregando um saco cheio de latinhas, Valdeci reinicia sua jornada incerta. E eu viro as costas, retomo o meu rumo, incomodada graças à impotência imperativa de minha vida. Hoje, reverbera a fala mansa e inconformada de Irmã Dulce quando se defrontava diariamente com a miséria visível, esparramada por todos os cantos: “…então, eu passo na rua, vejo um doente lá jogado, dou um pão, dou um café e vou adiante?”
Fotos: Maria Angélica Pizzolatto
Newsletter:
© 2010-2025 Todos os direitos reservados - por Ideia74