Cronicando

Nós que aqui estamos por vós esperamos!

por Maria Angelica
Publicado em 30 de outubro de 2020

Não, não, definitivamente, não! Eu nunca desejei a dança derradeira da morte. Nunca, nunca quis morrer cedo. Quero que saibam, minha mãe, meu pai! Foi só o sonho superlativo de viver. Não disse antes, não houve tempo, digo agora ao impalpável vento: “Leva, leva essa mensagem de amor ao meu amor maior. Não, absolutamente, não flertei perigosamente com a dama e sua foice, foi apenas o desespero no turbilhão da existência.”

Diante da placa de metal dourado fosco, eu me agacho e desenho com meus dedos os nomes de meus pais:

João Batista Pizzolatto, morreu em 1997.
Cleifa Giraldelli Pizzolatto, morreu em 2016.

Sei, eles não estão aqui. Sete palmos abrigam as estruturas que os expulsaram ao mundo… os fizeram engatinhar… caminhar titubeantes… mãos os ampararam… depois os soltaram… firmaram pés… correram pelo mato dos sítios atrás de borboletas… pássaros… mamonas… sons por entre as lavouras… voaram arando a terra… semearam… contemplaram a germinação… bailaram… enamoraram-se… geraram sete vidas… outras duas não vingaram… presenteados por nove netos… seis bisnetos… genros… noras… muitos agregados não de sangue, de coração.

Foto: arquivo familiar

Quantas fotos meu pai tirou em preto e branco… Quantos sorrisos eternizou, retocou e coloriu… Quantas brasas minha mãe queimou no fogão à lenha… a gás… elétrico… Quantos pratos pôs à mesa… Quantos vestidos de noiva costurou felicidades… Quantos tecidos cerzidos pelas mãos maternas na Vigorelli… Eu acompanhava o bailado de seus pés dando corda ao pedal de ferro a coser panos… Um dia, ela costurou entre lágrimas a mortalha de Lúcia, 37 anos, a irmã primogênita… A vida seguiu dolorosamente adiante… O fogo queimou muita lenha. Quantos frangos assados recheados de farofa, sustentados pela cintura fina em bacias brilhantes de latão cobertos por toalhas bordadas, eram levados à quermesse paroquial… Ela ia sorrindo, gargalhando com suas irmãs, amigas, seus pais… Quantos andores de santos ela enfeitou, coroou, carregou, ela o de Maria; ele, o de José. Quantas velas queimaram e derreteram em suas mãos… Quantos sonhos sonharam… se decepcionaram… A cada setembro, décadas atrás, a dupla dinâmica, os então meninos, meus irmãos Zé e Jorge, iam ao cemitério escolher as melhores coroas descartadas. Minha mãe era uma empreendedora. Cozinhava, costurava, tecia flores de papel tingido… tecia vestidos e asas de anjos. Quantos anjos mortais coroaram a sua Rainha… E para o dia da saudade eterna dos que se foram para nunca mais voltar, ela recondicionava, reaproveitava, lixava e pintava as coroas a enfeitar a melancolia, a ausência, o vazio inominável. No ano seguinte, repetia cuidadosamente semelhante tarefa. Nossa vida costuma se alongar no tempo de duas palmas de mãos. Não, jamais desejei a morte dantes da minha hora. Brinco de esconde-esconde. Por mais que doa, puxo o ar, prendo a respiração, liberto aos pouquinhos o ar através de meus lábios a música assoviada, quente, fria. Oxigeno a mente, recordo das mãos que construía coroas e que um dia da década de 70 subiu numa Kombi fugindo da falta de oportunidades de sonhar o sonho possível. Como camaleão, acatou ao conselho de seu pai e apreensiva, mas valente, fincou os pés no caminho e seus atalhos que ligavam Indiana a Campinas. Deixou para trás caros afetos, se revestiu de armadura e defrontou nova batalha em nome do conhecimento dos filhos e filhas. Casa geminada, desejos multiplicados, ao lado de Luiz e Olga, irmãos, os primeiros ‘astronautas’ desse mundo novo que se desvendava. Os dias dançavam alegrias, tristezas, ao redor do tempo embolado, atropelado, encerado, dedilhado como nas contas de um rosário. Ganhos, perdas, uma imensa coragem de viver. Ele, 72 anos. Ela, 89 anos. Enterraram pais, enterraram irmãos e irmãs, enterraram amigos. Tiveram a graça de ao pó voltar carregados pela extensa prole. João e Cleifa. Pessoas simples. Histórias simples. Gente como os dois compõem a biografia da História contada de boca em boca, impressa, por vezes, em livros. No dia dedicado aos Mortos, celebremos a Vida. Tenho comigo que a eternidade quem a dá somos cada um de nós ao não deixar morrer, segunda vez, nossos elos. Ao evocar os que partiram, imortalizamos suas trajetórias, amorosamente.

Filme: “Nós que aqui estamos por vós esperamos” – Marcelo Masagão (1999)

“Nós que aqui estamos por vós esperamos”, o título dessa crônica, está escrito na entrada do Cemitério de Paraibuna, cidade do estado de São Paulo no caminho do mar. O cineasta Marcelo Masagão também batizou com essa frase o seu belíssimo documentário, de 1999. A trilha sonora do músico e compositor belga, Wim Mertens, pontua o filme. “Nós que aqui estamos por vós esperamos” é uma emocionante viagem, sem palavras, sem narração falada, pelo século XX, de suas duas grandes guerras… conquistas tecnológicas… mudanças de costumes a partir da luta destemida de mulheres e homens… Eles, elas, voaram em voos sem volta, mas deixaram o legado de que de sonhos somos gerados. À revelia dos pesadelos, flutuamos. Nos cemitérios, nas ricas, nas pobres sepulturas, nomes de desconhecidos se entrelaçam a de famosos personagens. Ao final de nossa jornada, somos engolidos pela cova da mortalidade. Acolhidos pelos que aqui já estiveram e para onde todos iremos. Então, por que não celebrarmos a vida, nossa e de todos aqueles, anônimos ou não, que montaram esse palco e essa plateia? Se aplaudimos ou se recebemos aplausos, importa? Guardo uma certeza: precisamos uns dos outros para navegar em águas calmas, inquietas desse teatro chamado Terra. Bom espetáculo a todos!

Dica: O documentário “Nós que aqui estamos por vós esperamos” pode ser assistido no Youtube. Tem 1h13 de duração. Vale a pena!

 

Foto de capa: Veit Hammer

 

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