Pensar Psicanalítico

Normose, a doença da normalidade – Ou: como não ficar com a boca escancarada cheia de dentes esperando a morte chegar

por Vagner Couto
Publicado em 17 de outubro de 2024

Tenho pensado no Raul Seixas. Tenho pensado muito no Raul Seixas. Tenho, até, sonhado com o Raul Seixas, que, recentemente, inteirou 35 anos da sua transcendência.

Outro dia acordei com o Raul Seixas cantando “Maluco beleza” pra mim – repetidas vezes. Quando achei que ele havia se cansado, continuou com a “Metamorfose ambulante” – também repetidas vezes. Quando, outra vez, achei que ele havia se cansado, lá vem ele com “Ouro de tolo”, “Gita”, “Água viva”, “O trem das sete”, “Tente outra vez…”

Voltei a isso o meu olhar psicanalítico, que é e sempre foi o meu próprio olhar: a nossa normalidade tá muito chata, girando em torno de ideias produtivistas, capitalistas, materialistas, racionalistas, consumistas, simplistas e meritocráticas um pouco exacerbadas, que se nutrem de fundamentalismos e egoísmos imensos pra se fazer valer nesse nosso país varonil e latifundiário – inundado com a normalização da indiferença, do preconceito e da discriminação – e meio raso em metafísica, mística e espiritualidade.

Quando, dentro deste cenário que se tem como “normal”, acrescentamos o “fake news”, o machismo, comer pra diminuir a ansiedade, achar que uma guerra pode ser justa e justificável, ser consumista sem pensar nas consequências sociais e ambientais, interromper conversas sem uma licença evidente pra isso, entre muitos outros aspectos, estamos falando da normose.

É como canta o Raul: enquanto muitos se esforçam pra ser pessoas normais – fazendo tudo igual, repetitivo, copiado e replicado, vivendo a sua normose, há aqueles que se esforçam pra ser outros… – exercendo a sua metamorfose ambulante, se permitindo mudar nas ideias de verdade ou realidade que não lhes servem mais, afirmando o oposto do que disseram antes, abolindo algumas velhas opiniões formadas sobre tudo e indo um pouco além daquilo que está inscrito em obsoletos manuais de teologia econômica (!), de teoria religiosa (!) e de instrutoria comportamental desconectados da humanidade e da espiritualidade profunda que essas pessoas realmente pulsam e vivem.

NORMALIDADE E NORMOSE

O “normal” é um fragmento de realidade constituído daquilo que é denominado de norma, ou regra, ou costume, ou lei. É um estado padrão que é considerado “o” correto” de acordo com determinados pontos-de-vista, sem levar em conta que o que vale como “normal” numa dada cultura ou sociedade, é sujeito ser crime ou errado em outros lugares, com outras culturas e costumes – às vezes, dentro do mesmo Brasil.

Normas são estabelecidas através de um conjunto de conceitos, valores, estereótipos, presunções, idealizações e hábitos de pensar ou agir, entre outros elementos, que são aprovados por consenso ou por uma maioria elegida ou auto elegida. Normas podem servir pra estabelecer ou manter a ordem – um bem necessário ao mundo, pois a ordem nos dá a condição pra convivência harmônica e pra aprendizado do coletivo – mas nem sempre as normas, e, principalmente o seu excesso, propiciam isso, a ordem verdadeira – sendo, muitas vezes, voltadas a atender interesses escusos.

As normas são socialmente construídas com base em critérios socioculturais e ideológicos arbitrários, de interesse daqueles que as estabelecem. É comum esperar que, ao seguir todas as normas sociais, um indivíduo seja feliz e saudável, mas isso nem sempre acontece, pois diversas das nossas normas sociais são sujeitas a se revestir de contornos doentios – por exemplo, o autoritarismo, a burocracia e o controle – o que se designa como normose.

A normose, assim, configura-se como uma distorção comportamental referente à rigidez, fanatismo e obediência cega às normas, crenças, costumes e valores sistematicamente oferecidos como “verdade”, sem espaço pro discernimento e pra liberdade de consciência. É uma maneira doentia em condicionar o próprio comportamento a seguir moldes de conduta tidos como o “normal”, em prejuízo da autoexpressão individual e sonegando sua singularidade e verdade pra se enquadrar e ser aceito pelos outros ou por qualquer agrupamento social.

No mais, quanto ao que me diz o “Ouro de Tolo”, eu estou contente porque tenho um trabalho e sou um dito cidadão com direito a votar obrigatoriamente, de acordo com a norma, depois de ter passado fome e morado em porões e cortiços. Mas, não tenho a sensação de ter vencido na vida – pelo qual não estou infeliz, nem abestalhado, nem decepcionado e nem com a boca escancarada cheia de dentes esperando a morte chegar.

Assim, buscando mais conexão com uma dimensão de realidade que acolha minha singularidade e diferenciação, assim como minha incipiente lucidez e o meu ainda parco discernimento, sigo meu caminho buscando evoluir e metamorfosear, pois ainda tenho uma porção de coisas pra realizar e não posso ficar aqui parado.

COMO LIDAR COM TUDO ISSO? Psicanálise, terapia, autoconhecimento – algo assim.

Para falar particularmente com o autor, use: 19 99760 0201 [zap] ou vagnercouto1@gmail.com

Vagner Couto, psicanalista, com especialização em Psicoterapia Psicanalítica Breve, aperfeiçoamento em Psicoterapia Psicanalítica de Casais e formação em Psicoterapia Energética Corporal, tem mais de 40 anos de vivência em instituição dedicada ao autoconhecimento, à expansão da consciência e à espiritualidade. Poeta e escritor, é autor de “Documento sobre a colheita do algodão”, “Admirável momento novo”, “A estrela da manhã” e outros escritos. Jardineiro, ama cultivar pessoas e cuidar delas.

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