Pensar Psicanalítico

Sobre leoas e esquizofrênicos

por Vagner Couto
Publicado em 2 de dezembro de 2025

 

De vez em quando acontece alguma coisa diferente pra quebrar nossa rotina mental.  De mais eloquente, pra mim, no caso do rapaz e da leoa paraibanos, é a irrupção de um imponderável singular no meio do ritmo caótico dos nossos dias brasileiros, tão impregnado de imponderáveis comuns e mortes corriqueiras, individuais e coletivas – pois a morte é muito corriqueira…

 

Não vou abordar esse acontecimento como drama, ou tragédia, que, se o fosse, seria assim: Gerson viveu uma trajetória marcada por pobreza extrema, transtornos mentais não tratados e desamparo. Sofreu abandono, vulnerabilidades e violações de direito. Filho de mãe esquizofrênica, que não tinha como assumir os cuidados do filho, com avós também comprometidos na saúde mental, desde criança integrava a “rede de proteção da infância”. Ele, nas muitas vezes que foi detido, fugia do abrigo e ia em sua busca, querendo os seus cuidados. E a mãe, em sua condição mental, muitas vezes o levou ao Conselho Tutelar dizendo não mais ser a mãe dele.

 

Não vou, também, pela abordagem politicamente correta, a questionar coisas como a segurança do parque, a responsabilidade da sociedade ou o jogo de empurra de juiz e juíza ou de outros entes públicos.  Vou pela poesia, pelo olhar descompromissado que se deita sobre o caminho poético e mítico da jornada do herói que chega ao seu fim, um herói improvável com um fim improvável.

 

A cena central do fato, foto-grafada, subverte minha percepção mais habitual: não é um homem subindo em uma árvore pra fugir de um felino feroz. Inversamente, é ele, deliberadamente, descendo pela árvore para se encontrar com o animal – seu totem, talvez. Ficaram frente a frente, olhos nos olhos um do outro, e ele continuou descendo da árvore. Aí a leoa o puxa para o chão e a sequência de sacrifício acontece: ele logo é ferido na jugular e seu destino se define.

 

Tecnicamente, pra quem estava de fora, uma loucura, ou um suicídio. Mas, dentro dele, quem é que sabe o rio que corria em seu subterrâneo, em suas entranhas, em seu inconsciente… – o onde será que ele queria desaguar? O que ele queria encontrar?

 

Tal como a mãe, com diagnóstico de esquizofrenia, consta que Gerson tinha o sonho de ir à África para domar leões, mas ele não soube ou não pode domar seus próprios leões internos, e já tinha em si o arquétipo pra tudo que viria lhe acontecer. Numa de suas várias fotos publicadas pela imprensa, Gerson veste camiseta branca com a inscrição “Puma” – outro felino já gravado em seu peito.

 

Gerson era tido como esquisito, e muito bem lhe cabia a rubrica “esquizo”, forma abreviada de “esquizofrenia”, condição de (falta de) saúde mental que afeta o pensamento, as emoções e o comportamento, caracterizada por perda de contato com a realidade (psicose), alucinações e delírios. A origem da palavra remete a “dividido”, ou “separado”, referindo-se à fragmentação do pensamento. “Frenia”, (do grego phren), significa mente, alma, espírito ou razão.

 

A esquizofrenia é diagnosticada pela psiquiatria e psicanálise como um transtorno que tem por característica um eu dividido, fragmentado, multifacetado, manifestação de uma falha de organização psíquica. A identidade se torna instável, sem um centro claro onde se localizar. A realidade externa não é percebida como tal e não tem relação com o mundo interno do sujeito, o que influencia todo o seu funcionamento, comprometendo sua conexão com o que chamamos de “chão”. A psicanálise busca, através da escuta e da análise da fala do paciente ajudar o indivíduo a construir novos pontos de ancoragem, mas o tratamento medicamentoso, instituído pela psiquiatria, é indispensável. Acredita-se que a esquizofrenia seja causada por uma combinação de fatores genéticos, ambientais e químicos, assim como por eventos estressantes, uso de drogas na adolescência e desequilíbrios de neurotransmissores, mas tem mais coisas nisso tudo…

 

Esse caso do Gerson lembrou-me a história de Mogli, o menino-lobo, personagem da obra “O livro da selva”, de Rudyard Kipling, que narra a história de um menino órfão encontrado ainda bebê na floresta, e adotado e criado por uma alcateia de lobos na selva indiana, e que tinha como amigos um urso e uma pantera. A obra, publicada em 1894, explora temas como a lei da natureza, a amizade, a família e a complexidade humana. A história de Mogli é uma alegoria sobre a sobrevivência na vida adulta em relação com as leis que regem a vida na selva. Mogli vive a sua esquizofrenia na sua exterioridade: de início, vive entre animais selvagens. Depois, procurando se adaptar, na comunidade humana, à vida em sociedade. E, por fim, retorna à selva, após ser expulso da aldeia por ser considerado um “monstro” por seus concidadãos.

 

Já Leona, a leoa, outro personagem importante dessa história, nasceu no próprio Parque Zoobotânico Arruda Câmara, em 2006, filha de Darah e Sadam. Foi criada junto com os pais até a morte de ambos. Depois, ela chegou a conviver com Simba, um leão macho que viveu alguns meses no mesmo recinto, mas ele também morreu. Depois disso, ela ficou sozinha.

 

Leona tinha 19 anos, a mesma idade de Gerson, quando se encontraram, e ela fez o que se esperava dela, o que sua natureza selvagem (caçadora, defensora do seu território, com forte instinto de preservação) designou pra ela, em mais uma situação em que o ser humano não teve controle sobre o mistério da vida – que, nas suas tramas, colocou aquela leoa ali, num parque, atrás de grades, a distrair pessoas que não tinham nada melhor pra fazer num domingo – exceto Gerson que, determinado, atendendo algum propósito de uma das suas personalidades esquizofrênicas, foi ali se imolar. Ele o foi, e, depois de uma vida inglória, teve a sua morte gloriosa, forjada pela própria vida.

 

No mais, bem… – logo nos esqueceremos dessa notícia.

 

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