O IX Festival ETAPA de Música de Arte foi aberto em grande estilo na sexta-feira , dia 21 de agosto, à noite com o show do genial bandolinista carioca Hamilton de Holanda para cerca de 350 pessoas em um teatro onde cabem umas 400.
Após uma breve apresentação do Coro Infantil do Colégio Etapa, o Hamilton de Holanda Trio subiu ao palco às 20h25. Além de Hamilton, que já entrou sorrindo e fazendo graça com o bandolim, o grupo é formado por André Vasconcellos, no contrabaixo acústico, e Thiago da Serrinha, na percussão.
Eles começaram tocando duas músicas do CD Trio, ganhandor do Prêmio da Música Brasileira de 2015, compostas por Hamilton: “Capricho do Sul” e “Capricho do Raphael”. Eu havia passado parte da tarde daquele dia ouvindo esse CD e reconheci as duas na hora.
Sobre a primeira, Hamilton comentou: “Tem o sabor da música ternária tocada no sul do Brasil. A convivência com Yamandu, Guto Wirtti e Bebê Kramer me dá cada vez mais gosto por essa cultura. Ela foi composta em um tom que normalmente não se toca o bandolim, que é o Fá menor. A sensação que a tonalidade provoca é fundamental em algumas composições.”
Sobre a segunda, que me lembrou muito o genial e já lendário violonista Raphael Rabello, falecido precoceente há 20 anos e a quem eu assisti perplexo em 1993 no Olympia, em Sampa, Hamilton escreveu: “Uma das minhas referências mais importantes como instrumentista e como inventor é Raphael Rabello. Esse capricho tem um estilo que se aproxima muito do corta-jaca de Chiquinha Gonzaga, mas com um acento africano mais aparente e com uma escala com um sabor ibérico, lembrando da influência flamenca na música de Raphael”.
Em seguida, após aplauso intenso do público, mais músicas do CD “Negro do Samba”, “uma melodia muito simples, harmonia bossa-noveana com uns empréstimos modais de Milton Nascimento pra dar gosto de Minas” e “Sinhá”, parceria recente entre Chico Buarque e João Bosco, uma bela canção onde, segundo Hamilton, “se ouve a essência mais bela de um estilo que conhecemos como MPB. Especialmente com um quê de Choro, de Villa-Lobos. Também de milonga, de lundu. Acho que é um novo clássico, assim como “O Bêbado E A Equilibrista” e “O Que Será?” foram um dia.”. “
Após mais uma longa salva de palmas, o show prosseguiu com mais músicas do disco, como a virtuosística “Capricho Espanhol”, “música com a atmosfera da harmonia hispânica feita em compasso de 5 tempos com o swing da música brasileira. Em alguns momentos, lembra de passagem a ‘Santa Morena’ do mestre Jacob do Bandolim. O ritmo também se inspira no merengue venezuelano”.
A interpretação impecável e deslumbrante de HH arrancou aplausos e gritos da platéia.
Na sequência, ele tocou “Caprico do Carmo”, inspirado na cidade mineira de Carmo, onde nasceu Egberto Gismonte, a quem a música é dedicada. “O rítmo dela”, diz HH, “não sei qual é exatamente. É uma mistura matemática de compassos feita pra soar musical, onde a busca pela fluência se encontra com a sensação harmônica medieval, um pouco até irlandesa. É o encontro da precisão dos números com a poesia da vida.”
Após os aplausos, ele anunciou que as partituras dos Caprichos (21 ao todo) estão disponível no site dele gratutitamente para quem quiser baixar e tocar. O público sorriu e ouvi-se comentários do tipo: “Como se alguém conseguisse tocá-los, né?”. Mas ao menos um bandolinista na platéia, o grande músico baiano Almir Côrtes, eu creio que conseguiria…
Hamilton anunciou então uma música nova, chamada “Polícia e Ladrão”, que ele tocou brilhantemente pra variar e que teve ainda um solo espetacular de contrabaixo do André e outro de percussão do Thiago.
Depois, eles tocaram as famosas “Roda Viva”, de Chico Buarque de Holanda, e “Trocando Em Miúdos”, de Chico Buarque e Francis Hime.
Indo da MPB para o universo do choro, Hamilton tocou com o grupo “Segura Ele”, de Pixinguinha, e depois voltou à MPB com a belíssima valsa de Tom Jobim, “Luíza”, que HH tocou no seu bandolim acompanhado apenas do contrabaixo de André. A dupla emocionou muita gente na platéia.
André e Thiago então saíram do palco e Hamilton, sozinho, tocou de forma sobrenatural dois clássicos da Música Brasileira: “Carinhoso”, de Pixinguinha, e “Disparada”, de Geraldo Vandré e Théo de Barros.
Não tem como descrever o que é esse rapaz tocando bandolim solo numa noite tão inspirada, com um público extasiado, muitos completamente emocionados com o que ouviam (eu, por exemplo). Só sei que ao final de “Disparada”, todos se levantaram e aplaudiram Hamilton longamente. Ele ficou emocionado, sorriu e agradeceu muito.
O trio então se refez e juntos tocaram “Ciranda da Bailarina”, de Chico Buarque e Edu Lobo, com um solo improvisado do contrabaixo, e exibição de virtuosismo de Hamilton.
Em seguida, ele anunciou, para suspiros do público, que fariam, como última peça do show, a maravilhosa “Canto de Ossanha”, esse famoso afrosamba de Baden Powell e Vinícius de Moraes.
Ao final desta peça, Hamilton se despediu, agradecendo muito ao público pela maravilhosa noite e deu o show por encerrado exatamente às 21h51.
Mas o público, que queria que ele voltasse, levantou-se e ficou lá aplaudindo de pé durante três minutos sem parar, sem ninguém sair, uma coisa linda e rara de se ver em shows de música instrumental popular. Certamente o melhor público com quem tive o prazer de assistir a um show em toda minha vida.
Hamilton deu-se por vencido e, sorrindo, voltou ao palco às 21h54 com seus companheiros e com eles tocou, em um clima ainda mais informal do que foi toda a apresentação, “Sem Compromisso”, de Geraldo Pereira e Nelson Trigueira. Eu me empolguei e comecei a batucar baixinho com as mãos. Um velhinho, que estava sentado a minha frente, fez um sinal com as mãos pra que eu parasse e ouvisse. Obedeci.
Em seguida, atendendo a gritos da plateia, Hamilton começou a tocar “Brasileirinho”, de Waldir Azevedo, um dos maiores clássicos do choro ao lado de “Tico-Tico No Fubá”. Mas ele inovou tocando trechos em vários tons diferentes, desconstruindo e reconstruindo a melodia, diminuindo e acelerando o andamento. Terminou em grande estilo, pra fechar o show e se despedir. Mas o público extasiado queria mais, gritava, assoviada, aplaudia sem parar…
Hamilton, parecendo não acreditar que pudesse haver um público assim em Valinhos, olhou para a plateia com uma cara de “mas o que vocês querem mais que eu toque?”. E imediatamente começou a sapecar o Tema dos Flinstones!!!
Não sei se por ter me lembrado de minha infância ou por eu já estar profundamente ao longo de todo show, comecei a sorrir ao perceber as lágrimas rolando ao ouvir aquela música tão singela sendo tocada por um gênio a poucos metros de mim.
Mas instrumentistas geniais são assim: tocam com a própria alma pura e, por isso, tocam o coração das pessoas sensíveis. Hamilton é pura música e humor. Ele toca sorrindo, com um prazer absoluto, assim como todos os grandes instrumentistas que eu já conheci. O bandolim faz parte do corpo dele e por isso ele consegue fazer coisas incrivelmente complexas com o instrumento assim como podemos estalar os dedos ou segurar um copo d’água com uma mão e escrever com outra.
Às 22h05, ao final do Tema dos Flintstones, o público finalmente permitiu que Hamilton encerrasse o show e fosse tirar fotos e autografar CDs no foyer do teatro até as 23h.
Todos saíram deslumbrados do teatro, encantados com o privilégio de poder ter visto e ouvido aquele rapaz de 39 anos e quase 1,90m, que aos 5 anos ganhou um bandolim do pai para brincar de fazer música, fascinar pessoas por onde passa com seu brinquedinho de dez cordas.
Como dizia um saudoso sambista campineiro: “Brincadeira é coisa séria”.
Fotos: Danilo Leite Fernandes
Newsletter:
© 2010-2025 Todos os direitos reservados - por Ideia74