Não sou exatamente uma enófila disciplinada, daquelas que seguem uma cartilha de como harmonizar vinho com comida. E acho esse tema superestimado. Veja, por exemplo, as festas de fim de ano. São tantas sugestões de vinhos para acompanhar o peru, o tender, o bacalhau e o escambau (com perdão da rima besta), que até parece que vamos todos nos sentar à mesa de Downton Abbey e passar a noite mensurando a acidez do vinho com o cordeiro em caldas perfumadas, com direito a sábios discursos sobre o caráter da bebida e a personalidade da proteína (está na moda chamar carne de proteína).
Caro leitor, na sua casa é assim? Na minha, a gente abre alguns espumantes, alguns brancos, outros tintos, inclusive os trazidos pelos convidados, e passamos muito bem, obrigada. Nunca falta bebida, nem comida e sobra diversão. Esse papo me lembra uma viagem a Mendoza, há dois anos. Estávamos num desses jantares especiais que as vinícolas oferecem aos visitantes, em que os melhores rótulos da casa desfilam por cada etapa do festim, geralmente composto de boas-vindas, entrada, primeiro prato, segundo prato e sobremesa. Terminado o regojizo enogastronômico, a anfitriã elegante e bem treinada sugeriu que nos dirigíssemos a uma sala reservada do outro lado da propriedade para uma harmonização de Malbecs e chocolates.
Seria um gran finale inesquecível se algum vinho daqueles combinasse de fato com algum chocolate. Nada casou com nada, mas na explanação eloquente da moça estava tudo lindo e maravilhoso. E muitos dos presentes se deixaram levar, traídos pela falta de parâmetro para esse tipo de compatibilização. Aliás, quando comecei a me interessar por vinhos, chocolates e comida japonesa eram sinônimos de encrenca à mesa. Hoje, os especialistas são capazes de fazer uma lista de rótulos “perfeitos” para essas combinações. E são os mesmos vinhos e os mesmos chocolates que já existiam lá atrás. Estamos mais flexíveis?
Como fã de comida japonesa e de vinho, ainda não encontrei uma harmonização convincente para o wasabi, o gengibre e o shoyo da culinária oriental. Com boa vontade, arrisco um espumante, um branco aromático, um bom Verde, um rosé delicado… Mas, na dúvida e sem disposição para aventuras, vou de saquê mesmo e não dispenso o ritual de fazer a bebida transbordar no copo de madeira para atrair prosperidade. E o vinho? Bem, ele fica para uma oportunidade mais amistosa.
Outro dia, fuçando na internet, esbarrei num desses artigos que se propõem a explicar a bebida para a humanidade. O esforçado autor criou uma espécie de tabela com todas as variações de espumantes quanto ao teor de açúcar (brut, extra-seco, seco, demi sec, doce), tipos (cava, champanhe, asti, moscatel, rosé, Prosecco, frisante) e pratos indicados para cada um. Uma trabalheira digna de reconhecimento, claro, mas, desculpa aí, nem pregando na porta da geladeira eu conseguiria memorizar tanta informação, menos ainda seguir as recomendações propostas.
Com tanto preciosismo se tem a impressão de que é muito mais fácil errar do que acertar, o que não é verdade. E sabe o que acontece se alguma harmonização der errado? Nada, nadinha mesmo. Só você e algum eventual enochato vão notar. Não vamos confundir uma festa de ano, que tem o propósito de confraternizar com amigos e familiares, com jantar harmonizado, em que, aí sim, a intensão é curtir as surpresas da enogastronomia. E, mesmo nestes jantares, quando cardápio e rótulos são escolhidos a dedo, sob critérios técnicos, existem momentos de litígio – sem eles não teria graça, não é? E segue a noite.
Foto: Reprodução do quadro “O Senhor do Vinho“, de Juarez Machado
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