Para Crianças

“Faroeste Caboclo” e “O Abismo Prateado”: dois filmes, duas músicas

por Kátia Nunes
Publicado em 14 de agosto de 2013

Dois filmes recentes, “Faroeste Caboclo” e “O Abismo Prateado”, servem-se de um expediente não muito comum na criação de um roteiro cinematográfico: a transcriação de uma obra musical traduzida em um texto fílmico. Para Walter Benjamin essa “tradução é antes de tudo uma forma. Para compreendê-la desse modo, é preciso voltar ao original, já que nele está contida sua lei, assim como a possibilidade de sua tradução”. Toda tradução, por princípio, é uma interpretação que depende da obra original, assim como depende do tempo, do espaço e da cultura nos quais o “tradutor” se insere, dependendo do objetivo que se tem ao traduzir a obra. Esse objetivo de tradução pode ser literal ou interpretativo: pode apresentar o “olhar” do autor original ou apresentar “um” olhar sobre a obra de alguém. 

“Ele queria sair para ver o mar
E as coisas que ele via na televisão
Juntou dinheiro para poder viajar
De escolha própria, escolheu a solidão”
(Faroeste Caboclo, Legião Urbana)

“Faroeste Caboclo” (2013), o filme, pretende-se mais literal ao transpor a música da Legião Urbana, com o mesmo título, para as telas. A opção dos roteiristas (Victor Atherino, Marcos Bernstein e José Carvalho) é utilizar praticamente toda a letra da música, transformando-a em imagens, contando uma história muito próxima da letra criada por Renato Russo (autor da canção), apesar de algumas pequenas diferenças. O conceito da música “Faroeste Caboclo”, a saga do personagem principal e a maneira de contar essa narrativa em forma de um faroeste, contido até no título da música, adaptando-a a linguagem cinematográfica, sem perder a sua essência, permanece intacta. Essa adequação de mudança de linguagem deixa a história igual, mas ainda assim diferente.

O filme acompanha a saga de João de Santo Cristo adequando algumas passagens da letra da música, omitindo outras e criando algumas que não existiam anteriormente, mas tudo isso sem perder a essência e o foco primeiro da narrativa. João é o jovem interiorano que foge de sua terra natal para abrigar-se na cidade grande e o acaso o leva a encontrar sua grande paixão, Maria Lúcia, e o traficante Jeremias, que torna-se seu algoz. Dirigido por René Sampaio, “Faroeste” se beneficia por ser a tradução imagética de uma obra já conhecida e cultuada. Com isso os fãs da música ou da Legião Urbana ganham uma “homenagem” aos versos de Renato Russo, com um filme que nos propicia poucas ousadias em sua construção, mantendo-se subserviente a poética deste autor.

 

“Quando você me deixou, meu bem,
Me disse pra ser feliz e passar bem.
Quis morrer de ciúme, quase enlouqueci,
Mas depois, como era de costume, obedeci”

(Olhos nos Olhos, Chico Buarque)

Em “O Abismo Prateado” (2011), de Karim Ainouz, roteiro de Beatriz Bracher, baseado na música “Olhos nos Olhos”, de Chico Buarque, temos um efeito contrário. O filme parte da música para criar um novo universo, usa-a como inspiração e base de sua narrativa, fazendo com que a música seja responsável pela atmosfera de desespero que se abate sob a protagonista.

Abandonada pelo marido, que some deixando apenas uma mensagem no celular, ela mergulha dentro de sua dor, tentando entender o porquê dessa separação em sua jornada até o aeroporto. Tudo se passa em uma noite, na qual ela decide se irá ou não atrás do ex-marido em Porto Alegre. A música é usada como linha central dos fatos que acontecem no filme, mas cria-se uma nova história para justificar o clima e as angústias vividas pela protagonista, ou seja, não é igual, mas lembra. Ainouz faz com que a música de Chico Buarque seja a força motriz de sua narrativa, mas a traduz em sentimentos e sensações, com uma câmera muito colada ao corpo da atriz principal (Alessandra Negrini), nos fazendo compartilhar das angústias pelas quais essa personagem está sujeita. É um filme minimalista, econômico em sua estrutura, mas forte na opção por nos fazer adentrar esse universo particular da personagem, amparado nas “sensações” provocadas pela música de Chico Buarque, que é ao mesmo tempo dura e esperançosa, assim como o filme de Ainouz.

Ambos os filmes são eficazes em sua proposta e nos mostra que, independentemente da opção utilizada para traduzir uma obra de um suporte para outro, o importante é a adequação feita para uma melhor apreensão do espectador. Cada decisão requer diversas escolhas que são preteridas em prol de outras, fazendo com isso que uma nova obra seja criada, independente da fonte utilizada para sua feitura. Comparações entre obra original e sua transcriação sempre existirão, mas o que importa é saber desassociar uma da outra, percebendo o limite de cada suporte e quais são as regras que cada tipo de tradução solicita a seu interlocutor, aproveitando o que cada uma tem de melhor a nos oferecer.

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