Faça as Malas

Engraxate

por Marcos Craveiro
Publicado em 19 de dezembro de 2011

Inicio este artigo me perguntando se a palavra “engraxate” é compreendida por todos, porque a geração Y pode não saber do que se trata, já que a atividade em questão hoje em dia é muito restrita e talvez boa parte dos jovens nunca a tenha visto – ou reparado – na prática. Mas o artigo pretende falar com aqueles que não só a entendem como também a enxergam com o mesmo respeito e saudosismo que eu.

Dia desses fui até o centro da cidade para engraxar meus sapatos. Muitos podem me achar um tolo por desperdiçar meu tempo com algo que eu poderia resolver em casa e sem a necessidade de uma logística tão complicada. É verdade, mas só lá eu consigo a melhor engraxada, com componentes nostálgicos de muito prazer. Não se trata apenas de engraxar os sapatos, mas de permitir à minha memória reviver doces lembranças de um Centro que não envelhece mas que muda muito sua feição. Trata-se de me permitir conversar um pouco com o “Seo” Antonio cuja disposição e alegria disfarçam 76 anos de rugas e de histórias, boa parte deles vividos justamente ali, no Largo do Rosário, sentado à frente de sua cadeira. Ir até o Centro engraxar os sapatos é uma forma de me desligar do mundo moderno e buscar um pouco de inspiração em vias onde a correria me impede de trafegar com mais frequencia; lembrar da minha adolescência e de como era cada porta comercial daquele núcleo nobre, referência da cidade e testemunha de minha imigratória cidadania.

Engraxar os sapatos no Largo do Rosário significa rever o Palácio da Justiça que continua lá, imponente, onde ainda moleque a gente ia autenticar documentos, bem em frente ao Foto Imperial que sobreviveu a tantas mudanças de seu vizinho ilustre, o antigo Cine Windsor. Sentir o perfurme inebriante dos temperos do Rosário, um dos cardápios ainda preferidos da cidade, aquele típico “restaurante, restaurante mesmo”, como diria meu bom e velho amigo Cláudio Santos, que me apresentou a cidade e dividiu comigo aquelas calçadas por tantos anos.

Estar ali sentido o cheiro urbano da graxa me fez sentir novamente a sensação de que este mundo ainda é tátil, que nenhum invento moderno conseguirá substituir o capricho respeitoso das mãos do engraxate com seu feltro mágico, muitas vezes tocando um samba e lembrando Adoniran. O mesmo prazer de ir à feira aos domingos com a mãe ou comprar goiabada cascão no Mercadão…de comer um pimentão recheado com os amigos no Bar do Fernando aos sábados…coisas guardadas no fundo de um relicário, que abro sempre que posso pra lembrar de importantes valores da vida, pra reconhecer minha própria essência.

Pena que uma engraxada dura muito pouco. Vinte minutos e pronto, sapatos brilhando. Seo Antonio recoloca os cadarços, dá a última lustrada no pisante, me sorri um sorriso de “Volte Sempre” e me dá o preço. Uma ninharia pra tanto serviço prestado. Pago o dobro e justifico: couvert artístico pela afinadíssima interpretação assoviada de Matriz ou Filial, pelo nobre engraxate.

Obrigado Seo Antonio, voltarei em breve com um par de cada vez.

Wagner Bastos é Publicitário e Professor da PUC-Campinas

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