Hoje acordei me sentindo um animal acuado dentro desse apartamento gelado, prenúncio de um inverno que se avizinha. Tenho como horizonte os mesmos prédios velhos sufocando a Catedral onde deveria pulsar o coração da cidade. Ando de um cômodo a outro em movimentos repetitivos em busca de não sei o quê. O calendário já não serve para mais nada. A peste me lança em uma solidão repleta de silêncios, vazios. Sinto-me como se habitasse um farol no meio do oceano. A sensação que experimento é de ver navios ao longe em direção a algum lugar e eu aqui no meu não lugar, andando em círculos. Ouço os sons das ondas quebrando nas pedras que circundam o farol. Sou faroleiro a vigiar a luz que dá norte aos navegantes. Minhas pernas sobem e descem a escada em caracol. As mãos tocam paredes úmidas e de tão próximas assemelham-se a um caixão. Mal consigo respirar. Débeis e raros raios de sol perdem força ao tocar as sombras gélidas de meu corpo projetado no chão. O canto dos pássaros, minimalista, transforma o dia a dia em tortura. Fecho lentamente e lentamente reabro meus olhos.
Meu farol é a minha casa. Busco vida onde menos ela existe: meu celular. O mundo todo nessa pequena tela. Eu notei nos últimos tempos que amigos reais e virtuais postam fotos de filhos, netos, avôs, avós, tios, tias, amigos, amores, bichos, lugares, de preferência o Velho Mundo. A fotografia tem esse poder de fixar momentos efêmeros e torná-los eternos. Nos alimentamos desse tempo fugaz. É a minha vez de buscar na galeria de fotos um alento para o meu presente.

Tenho em mãos a fotografia de meus avôs maternos. Santa Faccio. José Giraldello. Os dois, filhos de famílias italianas que no fim do século 19 aportaram no Porto de Santos com toda uma vida guardada em malas e baús sem saber o que encontrariam ao certo nessa terra. Vieram para substituir a mão de obra escrava. Seriam, de certa forma, os novos escravos ao lado dos recém “libertos”, em 1888. No ano seguinte, os pais de meu avô, com seus seis filhos, chegaram a Campinas para trabalhar em fazendas de café. Meu avô nasceu em 1890, um ano após a primeira e a mais devastadora de várias epidemias de Febre Amarela na cidade – (1889 a 1897). Nos portos de Santos e do Rio, a doença contaminou e viajou em muitos dos imigrantes através dos trilhos até o interior de São Paulo. Parece que a história peregrina em círculos também, não é mesmo?
Meu avô cresceu trabalhando, até os 26 anos, na fazenda Mato Dentro, atual Parque Ecológico Monsenhor Emílio José Salim. Depois a família iniciou uma nova peregrinação por várias cidades em direção à região central do estado à procura de melhores condições de vida. Em Matão, onde se conheceram, meus avós maternos se casaram em 1918. E sempre em movimento, pegaram estrada rumo ao oeste paulista. Parada final: Indiana, por volta de 1922. Naquela época, o lugar era a última estação de trem da Sorocabana. Na ferrovia, o futuro vô Bepão trabalhou como foguista, jogava lenha nas fornalhas das máquinas. Mais tarde, passou a arrendar terras para plantar algodão; e assim seguiu na labuta praticamente até o fim de sua existência. Não ficou rico, pelo contrário.

Antes que a morte o levasse, em 1971, chamou a minha mãe e pediu que ela pegasse seus filhos; somos em 7; e fizesse o caminho de volta a Campinas. Apesar de tudo, ele não parou de sonhar. O sonho permanecia em nós. Retornamos em 1972. Também não ficamos ricos, mas não tem importância. A minha riqueza está em minhas mãos. Quase cinquenta anos depois, nesse meu farol em que se transformou minha sacada, olho outra vez para a foto dos meus avôs, em preto e branco. Vejo o vô Bepão segurando um lampião para clarear a noite no caminho dele, de minha avó e de meu pai, João Batista, o fotógrafo, testemunha desse momento passageiro.
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