Consoantes Reticentes…

Divã no divã

por Marcelo Sguassábia
Publicado em 15 de junho de 2013

 

Foto: Google Imagens

 

 

 

 

– Sim, pode falar.

– Por onde eu começo?

– Escolha o começo que lhe parecer mais interessante.

– Eu sou da área. Diria que dificilmente um profissional pode estar  
mais ligado à seara freudiana do que eu.

– Não diga, é mesmo? Você é psicólogo, psicanalista, psicoterapeuta?

– Nada disso. Eu produzo divãs. Trabalho numa fábrica deles há mais  
de vinte anos. Este divã mesmo, fui eu que fiz. Conheço cada um dos  
meus divãs, centímetro por centímetro.

– Que peculiar. Jamais analisei um fabricante de divãs, e arrisco afirmar que  
essa é uma experiência única nos anais da psicologia.

– Neste divã aqui está escrito “Diva” em baixo relevo, próximo a um  
dos pés do móvel. É minha marca registrada de autoria. Basta levantar  
um pouco ele do chão que já dá pra ver.

– Por que você escreveu “Diva” e não “Divã”?

– Tenho trauma de tio. Não de til, de tio mesmo. Irmão do meu pai, no  
caso. Era pequeno e peguei ele na lavanderia de casa, um pouco mais  
próximo da minha mãe do que seria conveniente a um cunhado com bons  
modos e castas intenções.

– Fale-me mais sobre isso.

– Por favor, pulemos essa parte. Acho que hoje já estou razoavelmente  
bem resolvido em relação a esse episódio.

– Será?

– Ah, sim. Depois que mamãe se foi, passei a administrar melhor o  
trauma.

– E o meu é o primeiro divã em que você se deita ou já passou por  
outros?

– Já deitei essa velha carcaça em cima de milhares de outros. Fazendo  
os testes de controle de qualidade na fábrica e também fora dela,  
testando a qualidade dos analistas.

– E eu? Já tenho uma avaliação preliminar?

– Ainda é cedo. Mas tive ótimas referências suas.

– Você é telegráfico. Parece que vai ser difícil arrancar coisas um  
pouco mais subjetivas suas.

– Acertou em cheio. Sou mesmo muito assertivo no que digo e no que  
pretendo fazer. E em cinquenta minutos de consulta dá para resolver  
muita coisa. Quero dizer, algo de prático, e não ficar nesse blá-blá- 
blá estéril.

– Por exemplo?

– Por exemplo, colocar os fantasmas para fora.

– Pois vamos a eles.

– O senhor me arruma uma faca?

– Faca?… serve esta?

– Serve sim.

(…)

– Espera um pouco, o que está fazendo? Para com isso, você está rasgando  
todo o divã…

– É só uma incisão, estou libertando os fantasmas. Estou soltando  
mamãe de sua longa prisão.

– Fique calmo, não me faça pedir ajuda.

– Vem, mamãe, vem… saudade, minha velha.

– Que horror, o que são esses ossos?

– Então, eu poderia explicar tudo direitinho, doutor. Mas acho que não precisa, concorda? Foram alguns anos procurando pelo número  
de série do divã até encontrar o dono, que o vendeu para outro  
analista, que o revendeu para o senhor…

– Não pode ser. Você acabou de falar que tinha superado o trauma.

– Eu precisava tranquilizá-lo para poder também ficar tranquilo e  
fazer o que precisava ser feito. Agora, se me permite, eu e mamãe temos pressa. Se quiser um divã novo, temos vários modelos para pronta entrega. Quer ficar com o meu cartão?

 

 

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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.

Blog:

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Email: [email protected]

 

 

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