Mais de 66 mil estupros por ano. Cento e oitenta por dia. Quase 82% são mulheres e deste total, 54%, meninas até 13 anos de idade. Quatro meninas são estupradas por hora no Brasil. Eu peguei os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019 referentes aos casos de 2018. A maior parte sofre abusos sexuais dentro de casa. Os abusadores? Pais, padrastos, avôs, tios, irmãos, primos… Não raro, as crianças só se dão conta, anos depois, de que sofreram uma violência. É devastador. Os números representam uma parcela dos estupros. O mesmo estudo revela que “os crimes sexuais estão entre aqueles com as menores taxas de notificação à polícia. No Brasil, estima-se que cerca de 7,5% das vítimas de violência sexual notificam a polícia.” É comum que essa violência física, moral e psicológica gere também uma gravidez, óbvio, indesejada.

Graças a uma ação que considero criminosa da ativista de extrema-direita, Sara Fernanda Giromini, vulgo Sara Winter; que chegou a ser presa e é investigada por divulgar fake news e por ataques ao STF – Supremo Tribunal Federal, uma criança de 10 anos foi duplamente violentada. Primeiro pelo tio acusado de abusar dela desde os seis anos. Segundo por fanáticos religiosos de um grupo católico que tentou impedir no grito e pontapés que a menina, grávida de 22 semanas, fizesse o aborto permitido por Lei: gravidez fruto de estupro; risco de morte da mãe; anencefalia do feto. A extremista deu o nome da criança, o dia e o hospital para onde seria levada. De pronto, os fundamentalistas se uniram, chamaram os médicos de “assassinos”; ajoelhados clamavam aos céus; mas, clamaram pela menina vítima de anos de abusos sexuais e que corria risco de morrer caso fosse levada adiante a indesejada gravidez? Alguém dali se compadeceu, de verdade, com a história estarrecedora da criança que representa milhares que sofrem abusos sexuais, caladas e tantas vezes com a conivência e o silêncio daqueles que deveriam protegê-las?
Foi um show de horrores e de exposição de uma criança agredida sexualmente, desrespeitada, apavorada. A gravidez e os abusos só foram descobertos após ela, ao sentir dores na barriga, ser levada pela avó ao hospital da cidade onde moram, São Mateus, Espírito Santo. Mesmo com a decisão da Justiça, o Hospital Universitário de Vitória se negou a fazer o aborto. A criança viajou dois mil quilômetros, de avião, com conexão, a Recife, onde foi internada no Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros. Por causa da divulgação da ativista que destila ódio, Sara Winter, precisaram montar uma operação de guerra para que a menina e sua avó entrassem no hospital escondidas no porta-malas de um carro. No domingo, dia 16, o aborto legal foi feito, mas persiste a preocupação com o que vai acontecer à criança. Há abundante animosidade e fanatismo religioso e escasso amor, compaixão, empatia pelo sofrimento da menina, de apenas 10 anos de idade.
O presidente da CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, Dom Walmor Oliveira de Azevedo, disse com todas as letras que o aborto foi “um crime hediondo”. Para ele, “foram dois crimes hediondos, a violência sexual e o aborto, mas que a retirada do feto não se justifica diante dos recursos existentes para garantir a vida de ambas, vítima e filho”. A igreja católica é contra o aborto, mas seria mais cristão olhar além da frieza institucional, amarrada pelos dogmas. Ele, como homem, se questionou se a menina desejava continuar gerando um filho de seu estuprador? Não, ela não queria. Uma pessoa que a atendeu contou que a criança “gritava, chorava” só de tocar no assunto da gestação.
A exposição dela gera outra forma de agressão que não se apaga facilmente: a do julgamento, injusto. É ela quem vai levar por toda vida essa marca, a ferida que nunca irá se cicatrizar. A cúpula da igreja católica e seu séquito fanático estarão ao lado da criança? Vão dar apoio, acolhimento? É pura hipocrisia e uma fé cega. Não devem os homens de batina; os homens com suas bíblias em riste nas mãos, seus símbolos desconectados da realidade cruel que se abate sobre milhares de vidas; políticos; homens de toga; fiéis míopes decidirem o que é permitido às mulheres fazer ou não. Essa é uma decisão que cabe a cada uma delas. E nunca é uma decisão fácil. Quem gostaria de fazer um aborto em sã consciência? Geralmente é o último recurso e o mais dolorido, em todos os sentidos. Eu tenho a minha opinião. Posso ser contra ou a favor do aborto, mas eu não posso impor a minha vontade, por quais motivos for, a outras pessoas. Vivemos em um Estado que deveria ser laico, por princípio.
O tio da menina foi preso em Betim, região metropolitana de Belo Horizonte, em Minas Gerais. E como costumam agir os abusadores sexuais, o agressor afirmou que o sexo era consentido. Esse é o discurso de todo algoz, transformar a vítima, no caso uma criança de 10 anos, em culpada.
Fotos: Maria Angélica Pizzolatto
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