Ele esperou sentado porque já estava cansado de procurar. Só não estava cansado de viver, pois, pra continuar vivo, pediu socorro naquela sexta-feira 13 – que não era o seu dia de sorte.
Carregando sua dor, ele foi lá, na Upa, na Cidade de Deus, pedir, (pelo amor de Deus!), um socorro pra sua dor no estômago, mas Deus não estava naquele balcão de atendimento vestido de atendente, e Deus também não estava naquele plantão vestido de médico – cumprindo os papéis que José Augusto Mota da Silva, 32 anos, precisava pra atender sua necessidade. Assim, relegado à sua insignificância, José, o Augusto, foi cumprir o seu destino de Silva no primeiro lugar da fila de espera do fim dos seus dias neste planeta.
Ele chegou muito vivo, na Upa, muito querendo continuar vivo. Chegou lá por suas próprias pernas, lúcido, falando da sua necessidade, se queixando de suas fortes dores.
A classificação de risco foi feita, mas sua necessidade não foi considerada urgente. Tanto não era que, poucos minutos depois que se sentou em seu banco de espera, cansado de estar cansado, sua cabeça tomba e, com ela, tomba a dignidade humana, tomba o respeito ao cidadão, tomba a responsabilidade pública, tomba o código de ética médica e tomba o homem que habitava aquele corpo – agora, descansado.
Ele chegou lá gritando de dor, pedindo atendimento e ninguém atendeu – diz o pai José Adão, outro Silva, que nem com a sua força adâmica pode auxiliar o filho. Já a irmã – diz que ele morreu que nem um bicho. Como diria Elomar: pobre, miserável e desvalido.
Consta que, depois de seu tombamento, um funcionário da UPA se aproxima dele, toca-o e vê que o Silva não reage mais. Assim, em seguida, ele é conduzido numa maca pro fundo da cena, fecham-se as cortinas e termina o espetáculo da sua passagem por nós.
Artesão, José Augusto, durante o dia, vendia brincos, colares e pulseiras feitos por ele pra adornar pessoas. E à noite, como garçom, ele servia essas mesmas pessoas em um restaurante – mas já tem outro Silva em seu lugar.
Após a morte, as providências urgentes são tomadas: o corpo de José Augusto foi encaminhado pro Instituto Médico Legal pra apurar a causa da sua morte, como se essa causa não fosse evidente: o descaso e a negligência. Depois disso, outra providência urgente foi tomada: a insignificância de José foi sepultada no domingo, na cidade em que nasceu. E, mais ainda, outra providência foi tomada, agora já no correr dos dias: esquecer logo esse caso, pois outra notícia de violência ao ser humano já ocupou o lugar do assunto “José Augusto”. Hoje, ele já é notícia fria, assim como seu corpo, assim como sua vida – apesar de eu estar aqui, discorrendo…
Não há, com tudo isso, como não lembrar da música “Construção”, do Chico Buarque: “Amou daquela vez como se fosse a última/ E atravessou a rua com seu passo tímido/ Seus olhos embotados de cimento e lágrima/ Sentou pra descansar como se fosse sábado/ Agonizou no meio do passeio público/ E se acabou no chão feito um pacote tímido/ Agonizou no meio do passeio náufrago/ … Deus lhe pague…”
E Deus nos perdoe, José, por ainda sermos tão rústicos.
COMO LIDAR COM TUDO ISSO?
Psicanálise, terapia, autoconhecimento – algo assim. Para falar particularmente com o autor, use: 19 99760 0201 [zap]
Vagner Couto, psicanalista, com especialização em Psicoterapia Psicanalítica Breve, aperfeiçoamento em Psicoterapia Psicanalítica de Casais e formação em Psicoterapia Energética Corporal, tem mais de 40 anos de vivência em instituição dedicada ao autoconhecimento, à expansão da consciência e à espiritualidade. Poeta e escritor, é autor de “Documento sobre a colheita do algodão”, “Admirável momento novo”, “A estrela da manhã” e outros escritos. Jardineiro, ama cultivar pessoas e cuidar delas.
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