Cronicando

Desassossego…

por Maria Angelica
Publicado em 15 de setembro de 2020

 

… aflição, apoquentação, angústia, afligimento, atormentamento, inquietude, freima…

Palavras que nomeiam esse sentimento de aperto no meu peito. Diversos nomes, porém, nenhum consegue dimensionar esse desgosto à beira do esgotamento. Gostaria de relacionar o oposto, mas não consigo escrever tais antônimos.

É a visão do inferno a milhares de distância daqui a torrar minhas energias, minhas alegrias. Todos os dias meu ânimo é incinerado através das imagens das queimadas do Pantanal, da Amazônia. Pouco, mas conheci esses lugares que não se desalojam de minhas lembranças. Não me abandonam. Frente a tamanha beleza, perdi a voz ao ouvir o canto que só ouvira no LP que tínhamos em casa, acho que pertencia ao meu pai. Na capa, o lendário Uirapuru.

foto: internet

“Escuta…”, disse o guia no meio da floresta, “…é o Uirapuru”. Sem me mexer, sob a umidade sufocante, respiração entrecortada, suor banhando todo meu corpo, fechei os olhos e me abandonei ao som melodioso dessa ave pequenina, invisível na mata, soberano. Só ouvi, não vi o Uirapuru-verdadeiro. E temo não ver, definitivamente.

Temo, também, não ouvir a onça-pintada esturrando; assistir ao voo da arara-azul; da ave símbolo da planície pantaneira, o Tuiuiú; olhar, ávida, o banho de sol dos jacarés às margens dos rios. Temo, reviver somente na memória a viagem da voadeira batendo nas águas da maior área úmida do planeta; hoje, prestes a morrer de sede, secando diante dos nossos olhos comovidos, mas inoperantes.

“Não era…”, penso eu “…motivo suficiente para sairmos às ruas em protesto contra essa agonia? Contra o crime de fazendeiros, empresários, políticos sádicos e gananciosos?” Compartilho, como tantos, a morte dos bichos, dos peixes, das árvores da floresta, do cerrado, dos rios que serpenteiam o Pantanal, a Amazônia. Compartilho a luta vã de algumas dezenas de pessoas contra o fogo implacável.

E quem provocou, onde está?

De tanto ouvir o Uirapuru, a agulha da vitrola riscou o “bolachão”. Aquele canto era vida para mim. Hoje, esse canto parecido a de uma flauta é o triste prenúncio de uma morte anunciada e por nós, cúmplices, assistida.

Silêncio! O Uirapuru ainda canta.

Foto: Adam Wilson

 

 

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