De soslaio, a vi. Baixei a cabeça, fingi não ver. Não quis invadir aquele momento de privacidade. Ao me aproximar, ela largou um belo sorriso e, para minha surpresa, fez o que eu não iria fazer. Ela me cumprimentou.
– Bom dia, moça, como vai?
Feliz pelo “moça”, correndo nos passos apressados em mim mesma, carregada de sacolas, retribuí o desejo de um bom dia. Meu sorriso não foi bonito como o dela.
– Estou tomando um banho, se justificou?
– Eu, na parada de segundos, movimentei meus lábios em direções opostas, ri, e respondi que com esse tempo abafado uma água gelada cai bem.
– Verdade! Vai com Deus, moça, desejou.
Carregando o diálogo não trocado, olhei para trás, sem interromper a pressa para não sei o quê e desejei o mesmo, que Ele ficasse com ela. Novamente um lindo sorriso. No caminho feito em minutos, passei, passou, passa e passará muita gente. E a gente não para. Lá na frente, na encruzilhada do arrependimento por não ter trocado mais palavras, balancei minha cabeça em desaprovação a essa falta de sensibilidade, na verdade, de educação. Como não parei a um tico de prosa, não sei o mais importante: seu nome, como se nome não tivesse. E o nome é a nossa identidade. Só sei que ela, a moça real, sentada ali na grama da praça São Benedito, santo de sua cor, abriu a torneira pública para se lavar. Atrás da moça de riso fácil, a roda de homens e mulheres invisíveis, reunidos no ponto de todas as horas, a aguardava. Ela? Ela se banhava. Da esquina, de longe, fotografei com minha íris aquele silêncio quase eterno em seu asseio de ausências, sem nome. De costas, ficou maior o abismo entre mim e ela.
Esses momentos, como o que deixei passar sem parar para olhar, são dentes-de-leão. Frágeis, lacônicos e de uma beleza que escorre como água entre dedos. Parece um algodão na haste verde. Quantas vezes apanhei essa plantinha e soprei para que o vento levasse suas pétalas. Ao assoprar eu fechava instintivamente meus olhos e fazia um pedido que somente seria realizado se todas as fadinhas se desprendessem do caule. Na vida, alguns acontecimentos são como dentes-de-leão, voam para não mais voltar. O semáforo abriu, atravessei a avenida e parei. Busquei a moça a se banhar. Não a vi. Vi a torneira fechada e a água escorrendo pelas pedras portuguesas desenhando a incerteza desse reencontro. Na imaginação apanho um dente-de-leão e o assopro. Cerro meus olhos. Desejo melhores dias aos invisíveis largados à própria sorte, aos que padecem a dor sem remédio, que partem antes da hora, aos ajoelhados pelos estupradores culposos. Logo, logo algum togado há de proclamar que a corrupção que joga no esquecimento milhares de existências é culposa.

Foto tirada do vídeo realizado por “Música para Despertar”
Ainda bem que existem sorrisos como da moça a se limpar em praça pública quando a tarde fugia. Ainda bem que há a arte. E, novamente, a arte me tirou desse pessimismo, culposo. Meu irmão Carlos me enviou um vídeo. É do ano passado, mas saiu esta semana em diversos sites de notícias. É simplesmente maravilhoso. A personagem é a espanhola Marta C. González. Ela morreu em 2019. Ela era bailarina. Foi a principal do Ballet de Nova York na década de 60. Terminou seus dias em um lar de idosos, presa a uma cadeira de rodas, refém do Alzheimer. Mas antes de seu ato final, aos primeiros acordes do “Lago dos Cisnes”, de Tchaikovsky, Marta Gonzáles se reencontrou consigo, escapou por instantes do esquecimento, da demência. Com a elegância e leveza dignas de uma primeira bailarina, abriu os braços encantada pela música, se transportou ao palco, dançou e voou como pétalas de dentes-de-leão.
(Foto de capa: PeterDargatz)
Veja abaixo o vídeo emocionante da bailarina. São 3:16. Aprecie!
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