Moedas de ouro. Rubis. Diamantes. Joias riquíssimas. Sonhamos, ao mergulhar, em dar de cara com um ou vários baús repletos de tesouros. Escavar buracos e topar com riquezas que a um toque de Midas transforme nossa miserável vida em opulenta, materialmente falando. Quem nunca sonhou em cravar seis números, sozinho se possível, no jogo de azar da megasena, tornar-se um milionário em um piscar de olhos e nadar em dinheiro feito um Tio Patinhas?
Fato: Somos bem mais interessantes aos nossos semelhantes se tivermos uma conta bancária milionária ou se tivermos poder. Ou, de preferência, os dois.
Fato: Pouquíssimas pessoas detêm poder e dinheiro; ou um ou outro. A maioria dos simples mortais navega nas ondas turbulentas das dificuldades diárias.
Possuir um tesouro. Depende do ponto de vista. Um papel enrolado, semelhança a um papiro, manchado no verso. Rasgos nos cantos da folha, no primórdio, branca. As bordas tingidas a pó de café. Técnica usada igualmente para colorir de oceano o espaço a compreender o Norte-Sul; o Leste-Oeste. Nove ilhas pululam igual mágica de condão. A criadora assim as nomeou e as distribuiu cada qual em seu lugar:

…e um montão de mar azul as abarca…
Cuidado com o temível Kraken, vermelho-sangue sanguinário!
Delicada e criativa a iniciativa de minha sobrinha e mãe do menino caçador de tesouros. Verônica resolveu retomar o costume de minha mãe de fazer sempre uma festinha no Dia das Crianças. Nunca passava em branco. E como sempre tivemos crianças na família, todo ano tinha bolo, refrigerante, docinhos e um povaréu. Desta vez, uma festa de uma criança só. E como o Guilherme divertiu-se, em especial, ao dar a largada em busca do tesouro escondido. A casa, seu oceano. Os cômodos, suas ilhas. Em mãos, as pistas a orientá-lo na jornada em seu barco rumo ao desconhecido. O prêmio? Somente após vencer os obstáculos; as feras marítimas; os momentos à deriva. Ao aproximar-se em seu barquinho de papel da Ilha da Estrela, o menino descobriu o primeiro tesouro: a bússola azul. Não mais ficaria sem direção.
Com ela na mãozinha velejou, velejou à Ilha da Fome habitada por um elefante só, como ele. E singrou adiante, em busca da saborosa Ilha da Gula. Aportou. Estufou-se de tanto fartar, mas ali não poderia fincar pés, na Ilha Fedorenta deveria aliviar-se. E não é que mesmo nos lugares mais feios algo há de bom em localizar? A nova pista indicava o caminho da Ilha dos Piratas renteando o horizonte. Ao se aproximar, o menino Gui com a bússola na palma da mão, apreensivo viu que de pirata só havia o título, nada a temer. Procurou e deparou-se com o último rastro da riqueza a conquistar. Ele gelou de pavor. Para tomar posse do tesouro seria preciso batalhar com o temível Kraken. Não havia pirata e sim o bicho marinho vermelho-sangue sanguinário. Medroso e corajoso, Guilherme enfrentou seu monstro, o pôs a correr o marzão além mar…
Com o coração a sair do peito de tanto bater (fechou a boca para não fugir por ela), viu em uma carruagem puxada por um burrinho o tesouro tão almejado: o monóculo, também azul. Em seu barquinho de papel, chapéu de capitão, espada na mão esquerda, através do monóculo enxergou a mais vital pista desses seus 5 anos. O recado da mamãe:
“Lembre-se: O maior tesouro é a diversão e estar perto de quem amamos.”
Essa é a história acontecida no Dia das Crianças. Eu recebi um convite singelo do meu querido sobrinho-neto Guilherme. Ele convidou a mim e outras pessoas da família para festejar seu dia. Deixou bem claro na mensagem de vídeo: “Não precisa trazer presente (brinquedos) não, eu tenho muitos.” Estávamos em oito adultos e somente ele de criança. São os tristes tempos desde que esse “bichinho ‘estranparente’ que pode ser visto no ‘microescópio’ eletrônico”, como, à sua maneira, diz o Gui, entrou definitivamente na pauta dos nossos dias. Às vezes, o Gui sai na frente da casa dele e vai à caça, não do tesouro nem do Kraken vermelho-sangue sanguinário, mas sim do terrível inimigo de nome Novo Coronavírus. Arma-se de uma bomba de ar, dessas de encher pneu de bicicleta, para capturá-los e em seguida os afogar em alguma poça d’água, imaginária. Ele tem pavor, bastante pavor.
Não tem volta, a vida das crianças está marcada para sempre. Há muita solidão entre os pequenos. Restrição de espaço. Ausência do convívio com seus iguais. Como vão administrar o afastamento de seus parceirinhos de escola? De seus amiguinhos? Das interações em sala de aula? Nos parquinhos? Imagino não ser tarefa fácil. Só que desse tempo de incertezas (se é que certezas existem) é a possibilidade de nos reinventarmos, de nos tornarmos criativos com menos e proporcionar o prazer da diversão pura e simples. Foi isso que a mãe do Gui fez: nada de presentes caros que logo ficam à margem, largados nos cantos do mundo infantil atropelado pelos mais velhos. O melhor presente é a brincadeira, a busca, as descobertas… E assim, com seu monóculo azul localizar novos amigos.

– O que você viu Gui, perguntei.
– Vi o passarinho (maritacas) que mora na árvore.
A árvore fica do outro lado do muro e abriga em sua ilha de florezinhas amarelas e folhas verdinhas uma enormidade de vida.
Fotos: arquivo de família
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