Cronicando

Caça ao Tesouro

por Maria Angelica
Publicado em 16 de outubro de 2020

Moedas de ouro. Rubis. Diamantes. Joias riquíssimas. Sonhamos, ao mergulhar, em dar de cara com um ou vários baús repletos de tesouros. Escavar buracos e topar com riquezas que a um toque de Midas transforme nossa miserável vida em opulenta, materialmente falando. Quem nunca sonhou em cravar seis números, sozinho se possível, no jogo de azar da megasena, tornar-se um milionário em um piscar de olhos e nadar em dinheiro feito um Tio Patinhas?

Fato: Somos bem mais interessantes aos nossos semelhantes se tivermos uma conta bancária milionária ou se tivermos poder. Ou, de preferência, os dois.

Fato: Pouquíssimas pessoas detêm poder e dinheiro; ou um ou outro. A maioria dos simples mortais navega nas ondas turbulentas das dificuldades diárias.

Possuir um tesouro. Depende do ponto de vista. Um papel enrolado, semelhança a um papiro, manchado no verso. Rasgos nos cantos da folha, no primórdio, branca. As bordas tingidas a pó de café. Técnica usada igualmente para colorir de oceano o espaço a compreender o Norte-Sul; o Leste-Oeste. Nove ilhas pululam igual mágica de condão. A criadora assim as nomeou e as distribuiu cada qual em seu lugar:

…e um montão de mar azul as abarca…

Cuidado com o temível Kraken, vermelho-sangue sanguinário!

Delicada e criativa a iniciativa de minha sobrinha e mãe do menino caçador de tesouros. Verônica resolveu retomar o costume de minha mãe de fazer sempre uma festinha no Dia das Crianças. Nunca passava em branco. E como sempre tivemos crianças na família, todo ano tinha bolo, refrigerante, docinhos e um povaréu. Desta vez, uma festa de uma criança só. E como o Guilherme divertiu-se, em especial, ao dar a largada em busca do tesouro escondido. A casa, seu oceano. Os cômodos, suas ilhas. Em mãos, as pistas a orientá-lo na jornada em seu barco rumo ao desconhecido. O prêmio? Somente após vencer os obstáculos; as feras marítimas; os momentos à deriva. Ao aproximar-se em seu barquinho de papel da Ilha da Estrela, o menino descobriu o primeiro tesouro: a bússola azul. Não mais ficaria sem direção.

Com ela na mãozinha velejou, velejou à Ilha da Fome habitada por um elefante só, como ele. E singrou adiante, em busca da saborosa Ilha da Gula. Aportou. Estufou-se de tanto fartar, mas ali não poderia fincar pés, na Ilha Fedorenta deveria aliviar-se. E não é que mesmo nos lugares mais feios algo há de bom em localizar? A nova pista indicava o caminho da Ilha dos Piratas renteando o horizonte. Ao se aproximar, o menino Gui com a bússola na palma da mão, apreensivo viu que de pirata só havia o título, nada a temer. Procurou e deparou-se com o último rastro da riqueza a conquistar. Ele gelou de pavor. Para tomar posse do tesouro seria preciso batalhar com o temível Kraken. Não havia pirata e sim o bicho marinho vermelho-sangue sanguinário. Medroso e corajoso, Guilherme enfrentou seu monstro, o pôs a correr o marzão além mar…

Com o coração a sair do peito de tanto bater (fechou a boca para não fugir por ela), viu em uma carruagem puxada por um burrinho o tesouro tão almejado: o monóculo, também azul. Em seu barquinho de papel, chapéu de capitão, espada na mão esquerda, através do monóculo enxergou a mais vital pista desses seus 5 anos. O recado da mamãe:

 

“Lembre-se: O maior tesouro é a diversão e estar perto de quem amamos.”

Essa é a história acontecida no Dia das Crianças. Eu recebi um convite singelo do meu querido sobrinho-neto Guilherme. Ele convidou a mim e outras pessoas da família para festejar seu dia. Deixou bem claro na mensagem de vídeo: “Não precisa trazer presente (brinquedos) não, eu tenho muitos.” Estávamos em oito adultos e somente ele de criança. São os tristes tempos desde que esse “bichinho ‘estranparente’ que pode ser visto no ‘microescópio’ eletrônico”, como, à sua maneira, diz o Gui, entrou definitivamente na pauta dos nossos dias. Às vezes, o Gui sai na frente da casa dele e vai à caça, não do tesouro nem do Kraken vermelho-sangue sanguinário, mas sim do terrível inimigo de nome Novo Coronavírus. Arma-se de uma bomba de ar, dessas de encher pneu de bicicleta, para capturá-los e em seguida os afogar em alguma poça d’água, imaginária. Ele tem pavor, bastante pavor.

Não tem volta, a vida das crianças está marcada para sempre. Há muita solidão entre os pequenos. Restrição de espaço. Ausência do convívio com seus iguais. Como vão administrar o afastamento de seus parceirinhos de escola? De seus amiguinhos? Das interações em sala de aula? Nos parquinhos? Imagino não ser tarefa fácil. Só que desse tempo de incertezas (se é que certezas existem) é a possibilidade de nos reinventarmos, de nos tornarmos criativos com menos e proporcionar o prazer da diversão pura e simples. Foi isso que a mãe do Gui fez: nada de presentes caros que logo ficam à margem, largados nos cantos do mundo infantil atropelado pelos mais velhos. O melhor presente é a brincadeira, a busca, as descobertas…  E assim, com seu monóculo azul localizar novos amigos.

– O que você viu Gui, perguntei.

– Vi o passarinho (maritacas) que mora na árvore.

A árvore fica do outro lado do muro e abriga em sua ilha de florezinhas amarelas e folhas verdinhas uma enormidade de vida.

 

 

 

Fotos: arquivo de família

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