Cronicando

Bom andar bem acompanhado

por Maria Angelica
Publicado em 7 de agosto de 2020

Poetas, cronistas, contistas, romancistas habitam um espaço exíguo de minhas duas estantes. À procura de uma nova viagem, deslizo meus dedos pelas lombadas encorpadas, enxutas; são odisseias de Histórias e histórias homéricas; contemporâneas e antigas narrativas das aventuras humanas… desumanas. “O Grito” – não, não é o emoji e sim a obra do norueguês Munch (1863-1944), provoca uma angústia a me encarar; paraliso momentaneamente meu indicador sobre as mais de mil páginas de “A História da Arte”, do austríaco Gombrich (1909 – 2001). Eu o folheio despretensiosamente das cavernas à intensidade de Van Gogh (1853-1890).

Em instantes aciono em minha memória as imagens de uma plantação de girassóis, em Sumaré, interior de São Paulo. Eu sou apaixonada por essa flor que do amanhecer ao entardecer, de leste a oeste, busca incansavelmente o sol. Em maio, a plantação atraiu uma multidão ávida por fotografar efêmera beleza. Agora, o campo de girassóis secos voltados ao solo sem vivacidade já não atrai ninguém. Não tem como não fazer uma analogia à nossa existência. Como é vertical a nossa queda. Lembrei-me de uma entrevista recente, ao site UOL, de Luiza Erundina, deputada federal. Essa paraibana entrou para a história da política brasileira ao se eleger, em 1988, a primeira prefeita de São Paulo. Aos 85 anos, defende-se: “A velhice não é um defeito”. A humanidade persegue a ilusão da juventude, está aí firme e forte o mercado bilionário da indústria de cosméticos.

A preocupação com a aparência, por vezes exacerbada, me põe diante do quadro de “Narciso”, do pintor italiano Caravaggio (1571-1610), mestre do claro-escuro. Na mitologia grega, Narciso, ao ver seu reflexo em um lago ficou anestesiado pela própria formosura; não conseguia enxergar os outros, apenas a si mesmo. O culto ao belo, ao novo, é um eco que perpassa gerações em diferentes culturas, umas mais do que em outras. Lamentavelmente, a regra é enxergar o envelhecimento, natural quando se vive mais, como um defeito.

 

Faço uma ressalva: não ao olhar de artistas que veem além das aparências; até a natureza morta torna-se obra de arte como prova o famoso quadro de Van Gogh, “Os Girassóis”. Em pinceladas de diferentes tons de amarelo, eternizou as flores murchas, poucas pétalas… apenas sementes. Retorno à fileira esse livro de arte que leio aos poucos, há anos.

Prossigo em minha viagem por inspiradas companhias em meio a vizinhos distintos. O mineiro Carlos Drummond de Andrade (1902 – 1987) em “Uma forma de saudade” deixa-se tocar pelo “Remorso de Baltazar Serapião” do angolano-português, Valter Hugo Mãe (48 anos); perto deles, o japonês Haruki Murakami (71 anos) prestes a libertar seu “Kafka à beira-mar”, em busca de autoconhecimento, faz parede ao inglês George Orwell (1903 – 1950) e o aterrorizante e atual “1984”, retrato de um Estado opressor. E assim se seguem meus livros nas estantes; distante dos seus iguais; na confusão de estilos, nacionalidades, datas; uns lidos e a maioria à espera de ganhar vida a partir da leitora indecisa em qual história embarcar.

São inúmeros lugares e escapes que a literatura me oferta. E pensar que milhares de novos livros continuam a ser escritos ao redor do mundo, publicados e eu pouco li de minha modesta biblioteca. E não lerei! O dilema perdura até tocar em “Canções”, de Cecília Meirelles (1901-1964). Olho a capa com o contorno de seu rosto, belo e melancólico. Abro e leio alguns versos:

“Quando meu rosto contemplo,
o espelho se despedaça:
por ver como passa o tempo
e o meu desgosto não passa.”

Peço sinceras desculpas à escritora, mas o que realmente me balançou a ponto de me sentar e chorar de saudade foi o que vi na contracapa. A dedicatória de minha mãe, a paulista, nascida em Indiana, Cleifa Giraldello Pizzolatto (1927 – 2016). Ganhei no Natal de 2010. Eu não me recordava desse presente. Ela amava ler, como as poesias de Cecília Meirelles. É materno o meu gosto pela obra da escritora carioca.


Emocionada, toquei cada palavra costurada. A mão direita tremia muito e, por causa disso, ao escrever, as palavras eram cerzidas por essa mulher de olhos azuis marejados de vida que costurou, remendou, uniu. Minha mãe também gostava de desenhar, assim pôs a voar os pássaros, flores, coração. Uma singeleza quase infantil. Com autoridade, declarou que “Tudo é Lus”, sim, dessa forma, com “s” e não “z”. Minha sábia mãe estudou até o terceiro ano do antigo primário; morava a quilômetros da escola e precisava ajudar o pai na roça. Mas quem se importa com os erros de português diante dessa Fé maiúscula na vida?

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