Liquidificultura

As Teatrais – “COM DOMÍNIO”

por César Póvero
Publicado em 4 de fevereiro de 2016

Numa noite… num condomínio fechado… numa casa… um homem… uma mulher…

(Na penumbra, uma mulher está sentada desconsolada admirando um porta retrato, aos poucos ela revela que se trata da foto de um cavalo).

Homem – (Entrando sorrateiramente).

Mulher (Sempre dramática) – Você sabe que horas são?

Homem  – (Assustado deixa cair paletó, sapatos e pastas) – Boa noite, meu amor?

M – O que é uma boa noite? O que é amor?

Homem  – (cuidadoso) Boa noite, quer dizer boa noite. Amor quer dizer, amor! Houve algum problema com seu cartão de crédito? (ele desanimado com a recepção da esposa também dialoga de costas para ela) – A planta da casa nova não ficou pronta? Arquiteto incompetente, eu sabia…

M – Eu sou a única mulher viúva/casada, da face da Terra.

(Casal se encontra, mas ficam o tempo todo andando pela “sala” sem se encarar).

Homem  – (Irritado) Pare com essas suas crises, já perdi a conta, hein!

M – Mais um aniversário de casamento que você esquece!

Homem  (Nervoso) Não é possível! Eu mandei minha secretária me lembrar! Vagabunda, irá amanhã mesmo pro olho da rua!

M – Nenhuma florzinha arrancada de um túmulo, nem ao menos um brinde com uma cidra em oferta, nem um sonho de valsa. Aquele Ginkgo Biloba, você deveria voltar a tomar.

Homem  – Vou pro quarto de hóspedes, hoje eu preferiria dormir com o meu chefe, do que dormir com você!

M – Amanhã é o aniversário de nossa filha, tente não se esquecer, ou troque a vagabunda da secretária.

Homem  – (Irado) Você ta querendo me enlouquecer? Eu não tenho filha, sou estéril!

M(irônica) Cada dia mais esclerosado, eu falei pra você fazer o cursinho “Como exercitar a memória na terceira idade”.

Homem  – Terceira idade o cacete! Eu não posso ter uma filha e não me lembrar!Tenho certeza que nunca… nunca… f… f… fecundei ninguém.

M – Só essa que me faltava! Mais uma de suas crises de amnésia.

Homem  – Eu sempre tenho isso? Não é possível!

Mulher – A última foi há quase dois anos, você saiu pra buscar coxinhas de rã às três da manhã. Foi encontrado vinte e quatro horas depois… no Acre com problemas de visão, dizendo que foi abduzido.

Homem  – (Trágico) Não posso acreditar! Eu não merecia acabar assim.

Mulher (Histérica) Qual o problema de acabar assim ou assado, você não vai se lembrar mesmo (gargalha).

Homem  – Gargalhe da desgraça alheia!… Refresque minha memória, afinal… antes dessa história do Acre e das coxinhas de rã, o que mais aconteceu?

Mulher – Recebi uma ligação anônima, dizendo horrores de você.

Homem – Quem era o caluniador? Desembainharei a minha espada e desafiarei o hipócrita para um mortal duelo com vantagem para o acusado caluniado, eu no caso.

Mulher – Foi anônima, idiota! Como vou saber? E não seja ridículo, você não sabe nem jogar peteca, o que dirá esgrima?

Homem – Diga o que aconteceu!?

Mulher – Ridículo é eu me prestar ao papel de ter que refrescar essa sua memória sem caráter. (…) Você estava com a vagabunda da sua secretária no motel!

Homem  – Que idiotice, você não levou a sério essa ligação, eu nunca faria isso, meu amor!

Mulher – Peguei você com a boca na bo… na botija.

Homem  – (Enojado) Mate-me, eu mereço! Que criatura mais calhorda e mais sem caráter que me transformei, exijo que você se separe de mim já e me de um imenso pé bem no meio da minha bunda e me peça uma enorme pensão alimentícia e uma absurda indenização por danos morais. Mesmo porque minha secretária é horrorosa, chamo a de vagabunda, só pra descarregar a minha frustração com a tamanha incompetência dela, mas chamá-la de vagabunda chega a ser uma ofensa as pobres mulheres de vida fácil, porque a coitadinha é tremendamente feia e estupidamente desprovida de qualquer “sex appeal”.

Mulher – Ela é uma perfeita modelo, eu obriguei você a despedi-la!

Homem  – Ah!Bom! Eu já estava preocupado com a minha boca na botija, eu já estava pensando em fazer bochecho água sanitária. Engraçado, tenho a sensação de que tenho a pobre coitada trabalhando comigo a tantos anos, nunca a despedi por pena e você me diz que a contratei a meses, me interne urgentemente. Não, primeiro quero ver minha filha, coitadinha, amanhã é aniversário dela, vou mandar a vagabunda, comprar um boneca bem bonitinha para ela. Depois sim mando a vagabunda pro olho da rua!

Mulher – Sua filha já não brinca mais de boneca, se esforce.

Homem  – Não, me diga! Por favor, elas estão muito precoces hoje em dia, temos que controlá-las, aos cinco anos já estão usando batom e com namoradinhos. Morro de medo, se continuar assim aos quinze já serão mães.

Mulher – Você está acabando comigo, sua filha tem dezessete anos, sempre foi precoce, já é mãe-solteira, foi pra ela que você saiu de madrugada pra comprar coxinhas de rã, ela estava com desejo e você disse que sua neta não poderia nascer com cara de sapo.

Homem  – Não me diga que minha neta já vai nascer?

Mulher – Me poupe! Já faz oito meses!

Homem  – Daqui um mês vou ser avô, isso porque eu não lembrava que era pai.

Mulher – Ela tem oito meses de idade, sua neta já nasceu!

Homem  – Que emoção, não sei se choro, se rio, não lembro de nada! Impossível, acho que esconderam de mim essa criança, eu não permitiria em minha família, uma bastardinha!

Mulher – De quem afinal, você acha que é o barulho insuportável que não nos deixa dormir a noite inteira, da bastarda, chora a noite toda.

Homem  – Engraçado, sempre achei que fosse um gato no cio.

Mulher – Não, infeliz, aquele é o outro barulho que alterna com o choro da bastarda. Ai é que a bastarda acorda e então volta a chorar.

Homem  – É um gato no cio?

Mulher – É um alarme do puto do nosso vizinho que tem numa cerca eletrificada e que dispara com as gotas que caem de uma infiltração.

Homem  – Me interne! Não vou suportar, minha vida é um terrível pesadelo!

Mulher(Tira uma arma e ameaça se suicidar subindo na cadeira).

Homem  – (Assustado, tapa os olhos) Pelo amor de Deus! Não se mate! Eu não vou dar entrevista para programas bregas… ((O telefone relincha – ele atende) Alô, não, não! O senhor se enganou! Não é aqui não! Eu não posso ver presunto, eu não posso ver presunto, engraçado, disso eu me lembro! (O telefone relincha –  ele atende) Alô, eu sabia que era o senhor de novo, que insistência, não? Não tem nenhuma… já disse que não tem nenhuma Djanira, eu jamais me casaria com uma Djanira… (Luz acende. Homem fala enquanto a admira) …mesmo que ela fosse… lindíssima! Gostosíssíma! (desliga)

Mulher (olha para ele pela primeira vez) Eu sou Djanira, quem é você?

Homem  (olhando pela primeira vez para ela) Eu sou Valfredo.

Mulher – Eu jamais me casaria com um Valfredo!

Homem  – Condomínio fechado. Mania de fazerem casas iguais, de noite é tudo igual, que quadra é essa?

Mulher – “J”.

Homem – O que não faz um happy hour esticado demais, a minha quadra é a “I”, que bom, eu já estava acreditando naquela história toda de pai, avô, abduzido, coxinha de rã, boca na botija. Ufa! Escapei! (Mulher ameaça se matar) Por favor, entenda, eu não sou o cavalo do seu marido, não moro nessa casa.

Mulher – O que importa, todos condomínios são iguais, todas as quadras são iguais, todas as casas são iguais, todas as filhas são iguais e todos os maridos são iguais, vai você mesmo! (ela aponta a arma para a cabeça, sem coragem fecha os olhos e erra absurdamente a mira, cai no chão/ ele não a olha/ela desmaia/telefone toca/ela desperta assustada).

(O telefone relincha).

Homem  (Ele atende sem notá-la) Olha, eu não tenho culpa de não gostar de Djanira, não fui buscar coxinha de rã, não andei de disco-voador, minha secretária não é gostosa, você é um crápula, eu acho que to bêbado e a sua mulher tá morta. E escuta aqui! Eu não preciso tomar Ginkgo Biloba! (desliga e nota que ela está despertando) Dona Djanira! Que bom que você não morreu, eu não estava nenhum pouco a fim de fazer faxina a essa hora pra limpar minhas digitais.

Mulher – O senhor não apareceu aqui por acaso! (puxa-o maliciosamente para outra parte da casa)

Homem  – O que a senhora vai fazer comigo? Eu sou um marido extremamente fiel.

Mulher – Por favor, só preciso de auto-ajuda. (ela segura a mão dele, medindo o com os olhos em toda sua extensão).

Homem  – Tudo bem, (se admira) o “alto” ajuda. (ele a carrega e sobe a escada para o quarto).

 

 

FIM

 

 

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