Liquidificultura

As Teatrais – “Café da manhã com cianureto”

por César Póvero
Publicado em 4 de março de 2017

Cortina se abre

Vitória (Atriz na faixa dos seus 40 anos, vestindo figurino típico de Chapeuzinho Vermelho, exageradamente feliz canta: Pela estrada a fora eu vou bem sozinha, levar esses doces para a vovózinha, ela mora longe e o caminho é deserto e o “Lobo Mau” passeia aqui por perto…

Nenê (Marido de Vitória, uiva sem ser visto).

Vitória – Bom dia! Bom dia flores! Bom dia pintassilgos, rouxinóis, bem-te-vis, cotovias… Bom dia urubus! Adoro urubus! Nenê, anda logo! Vem tomar seu suco! Querido! Eu to indo pra um teste de um musical infantil.

Nenê (De pijama de bolinhas) – Bom dia bem, tudo bem, se ta bem? To bem, bem. Então tá bem. Tudo fica bem, quando tudo ta bem, né bem? Bem… bem… eu queria te dar uma notícia, bem.

(Enquanto isso Vitoria faz exercícios vocais).

Vitória – Mi-mi-mi-mi-mi-mó-mó-mó-mó! Mi-mi-mi-mi-mi-mó-mó-mó-mó! Eu ia fazer um bolooooo!, Mas acabou o ferrrrrmentooooooooooooo! Toma o seu suquinho, bem!

Nenê – Mas bem, é que…

Vitória – Vai perder as vitaminas, bem! Anda que eu tenho um teste!

Nenê – Bem… mas é que…

Vitória – Para com isso, toma logo!

Nenê – Meu bem mandou. (dá alguns goles no suco) Hummmm! Está com um sabor diferente… você colocou algo?

Vitória – Diferente?

Nenê – Uma delícia! Ah! Você e seus segredinhos, né bem?

Vitória – Toda mulher tem seus segredinhos… na cozinha.

Nenê – Ainda mais uma mulher como você, dona de casa exemplar, cozinheira de mão cheia, mãe dedicada e esposa perfeita.

Vitória – Você andou bebendo?

Nenê – Por quê? Você sabe que sou abstêmio

Vitória – Então ta, toma esse suco logo, por favor.

Nenê – Estou tomando… Hummm, é laranja com acerola?

Vitória – Não.

Nenê – Com cenoura?

Vitória – (nega com a cabeça)

Nenê – Com… mamão… maracujá? Não consigo identificar esse gostinho…

Vitória – Laranja, beterraba, tomate uma pedrinha de gelo e cianureto. Tava bom de açúcar? Muito açúcar faz mal.

Nenê – Sua jararaca, surucucu, cascavel! Ah!!! Sua jiboia…

Vitória – Jiboia não! Vamos parar com esse Butantã! Poupe a flora!

Nenê – A Fauna… sua burra!

Vitória – O respeito é o alicerce de um bom casamento, de uma boa relação.

Nenê – Ai, ai, eu não estou bem.

Vitória – Está fazendo efeito. Sim, porque eu escolhi o melhor. Não te dei qualquer porcaria.

Nenê – Você que é uma porcaria (agarra Vitória).

Vitória(tentando se livrar, mas não consegue) Me solta me larga, eu quero lembrar de você com uma expressão tranquila, lânguida, plácida, morra com dignidade!

Nenê(pega a esposa por trás, ela não reage) Ta gostando? Tá?

Vitória – Pode ser uma nova experiência para mim, nunca fui necrófila, nunca transei com um morto.

Nenê – Por que meu bem? Por quê? Tudo parecia tão perfeito.

Vitória – Não existe casamento perfeito. Isso não é cinema! Estamos no palco da vida.

Nenê – Estamos?

(Ambos olham para a platéia, Vitória Rose assente)

Vitoria(trágica) Eu sou uma mulher no meu limite. Um homem jamais deveria esperar a mulher chegar ao limite. E agora tudo que é seu, vai ser meu.

Nenê – A notícia que eu ia te dar é que… eu gastei tudo.

Vitória – Tudo em quê?

Nenê – No jogo…

Vitória – Ah… mas pelo menos temos essa casa…

Nenê – Não! Está hi-po-te-ca-da!

Vitória – E agora, Nenê do que é que eu vou viver? Que traição! Nunca vou te perdoar! Traição é coisa que eu não admito! Meu Deus, eu estou viúva, pobre e na rua da amargura. O que eu fiz de mal? Me diga? O que eu fiz para merecer isso?

Nenê – Vitória, vou morrer.

Vitória(tira da bolsa um véu negro e coloca teatralmente na cabeça, põe flores no peito dele) Morre sim, morre agora, morre mesmo, não deixe de morrer. Me disseram que era rapidinho. Para de lutar contra, relaxa, deixa vir, isso se entrega…

Nenê – Vitória… você é um MOSNTRO! (ele geme de dor novamente, e apaga).

Vitória(ela chora e ao mesmo tempo comemora a morte do marido, vai para o telefone) Eu sou um monstro! Alô, Amor, deu tudo errado. Ta mortinho. Como ele está morto? Ué, eu dei o cianureto em dose cavalar, 5 vezes mais do que você mandou. Pra garantir. Como é? Sua funcionária míope trocou a remessa de cianureto por purgante? Então era por isso que ele estava agonizando de dor, mas então, ele ainda ta vivo! Você não presta como farmacêutico e nem como amante! Nem como amante!

Nenê (geme, acorda e engatinha fugindo).

Vitória – Que merda, hein? O que eu faço agora? Nenê volta aqui! Vamos discutir a relação! Mi-mi-mi-mi-mi-mó-mó-mó-mó! Mi-mi-mi-mi-mi-mó-mó-mó-mó! Eu ia fazer um espetáculooooo!, Mas acabou o fomentooooooooooooo! 

(Nenê acorda e engatinha em volta da mesa, Vitoria Rose o persegue)

Nenê – Só uma coisa, Vivi!

Vitória – O que? Sobrou alguma coisa?

Nenê – Você ta muito velha pra fazer Chapeuzinho Vermelho (gargalha e sai uivando).

Vitória – Nenê, era só um purgantezinho, homem fraco! Ta na hora de eu ir pro meu teste. Você deveria ter percebido, não sou de dividir o palco com ninguém. Sou uma atriz de monólogos!

Nenê (uiva).

Vitória – Ta querendo roubar a minha cena é? (sai cantando – Quem tem medo do Lobo Mau? Lobo Mau!Lobo Mau!…

Nenê(uivando).

(Cortina se fecha).

FIM

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